Segunda-feira, 5 de Janeiro de 2015
Equívocos da «Nova teoria da felicidade» de Miguel Reale

 

 Em «Nova Teoria da Felicidade», o filósofo Miguel Reale brinda-nos com teses que merecem uma reflexão cuidada. 

 

A FELICIDADE É UM VALOR RACIONAL?

 

Escreve Miguel Reale:

 

«1. A felicidade é um valor racional que se fundamenta em sentimentos de ordem e equilíbrio e em vivências harmónicas de carácter psíquico e social. Não em estados eufóricos e jubilosos momentâneos» ( Miguel Reale, Nova Teoria da Felicidade, Editora Dom Quixote, Março de 2013, pág. 25).

«3. A felicidade procede de uma decisão racional, de um juízo deliberativo, pelo qual a consciência conclui (emotiva, mas sobretudo logicamente) ser feliz ou estar em estado de felicidade. »( Miguel Reale, Nova Teoria da Felicidade, Editora Dom Quixote, Março de 2013, pág. 91).

 

Esta é uma posição intelectualista sobre a felicidade, de raíz aristotélica e estóica. Discordo: a felicidade é essencialmente, o prazer que comporta uma grande dose de irracionalidade, isto é, uma harmonia com o instinto não com a razão. Reale opõe-se a Freud e a Nietzsche na medida em que estes sustentaram que a felicidade deriva dos sentidos, da realização dos instintos básicos do homem - a vontade de poder sobre os outros em Nietzsche: fazer a guerra, vencer os outros através da força; o id ou infra-ego, em Freud, incluindo os instintos de comer, beber e, sobretudo, o instinto sexual, a pulsão de Eros. A felicidade do filósofo é a felicidade tranquila, a eudaimonia. Mas há uma outra felicidade, dionisíaca, orgíaca, gastronómica, sensual que Reale apaga ou rejeita: é o sensualismo, o prazer físico ou psicofísico puro.

 

O OUTRO É O PONTO ÉTICO CENTRAL DA FELICIDADE?

 

E prossegue Miguel Reale:

 

«15. No futuro, o outro, como ponto ético central, será estabelecido como critério primeiro, último da felicidade pessoal. Neste sentido,  resgatam-se igualmente de modo pacífico ( é o único modo de o fazer sem a contestação radical de Nietzsche, de Freud e de Foucault), sem revoluções violentas, apenas acompanhando as mudanças sociais provocadas pela terceira revolução industrial (tecnologias da informação), os antigos valores éticos (sem carga religiosa, apenas humana) que fizeram da Europa o continente mais importante dos últimos 3.000 anos: o valor da solidariedade, do companheirismo, da amizade desinteressada, da cooperação inter-pares, da lealdade e fidelidade, mas também os antigos e sempre actuais valores humanistas cristãos da misericórdia, da caridade e da piedade, hoje mais propriamente designados como assistência, solidariedade e cooperação sociais, os valores comunitários vicinais da fraternidade e interajuda, os valores confucionistas de respeito e veneração pelos ancestrais e pela hierarquia não imposta do mérito e da competência, e os valores budistas vinculados à compaixão como comoção própria pelo destino do outro.»( Miguel Reale, Nova Teoria da Felicidade, Editora Dom Quixote, Março de 2013, pág. 25; o destaque a negrito é posto por mim).

 

Ora, é falso que o critério primeiro e último da felicidade pessoal seja o outro. Não é. É o eu, o id (instintos primordiais) de cada pessoa. Por muito bem que façamos aos outros, fazemo-lo porque isso satisfaz o nosso ego ou o nosso id (instintos de conservação e reprodução). Isto é de uma evidência elementar. O combatente da democracia que combate as forças da reacção e do totalitarismo fá-lo, antes de mais, por si mesmo e em segundo lugar, pelos outros: ele deseja ser livre e que todos sejam livres e sente prazer em abater o poder de fascistas, nazis ou burocratas comunistas. Mas proclamará que se bate a favor do povo e não do seu ego pessoal singular. Miguel Real não desmonta esta ilusão altruísta e aliocêntrica. Recusa a psicologia das profundidades, que revela o egocentrismo essencial como mola da ética.

 

O homem que ama apaixonadamente a sua esposa ou namorada e lhe oferece jantares e estadia de luxo em hotéis, jóias, roupas lindíssimas, viagens a lugares maravilhosos, quantias avultadas em dinheiro, beijos e prazeres eróticos frequentes,  ama-se a si mesmo. O seu cônjugue, isto é, o outro é a mediação (no  sentido temporal de, como antítese ser o segundo momento da tríade dialéctica), porque o amor dirige-se ao outro com bilhete de retorno, a síntese hegeliana.  Só se pode tornar felizes os outros se nós próprios o formos - esta é a regra geral, que comporta algumas excepções.

 

Portanto, o ponto central da ética é a felicidade de cada indivíduo sem destruir ou menorizar a felicidade de outros - objectivo que é, ao menos em parte impraticável. A felicidade dos escritores triunfantes no mercado e nas idas à televisão acarreta a infelicidade dos escritores rejeitados e ignorados.

 

A FELICIDADE NÃO EXISTE?

Miguel Reale sustenta que a felicidade não existe a não ser mentalmente, como ilusão:

 

«1. A felicidade, como ser ético, não tem existência concreta.

«2. A felicidade, como ser ético, estatui-se unicamente como ser mental. Possui existência mental.»

«3. Neste sentido, a felicidade ´é uma ilusão, uma construção mental. »

«4. Enquanto construção mental, a felicidade não corresponde, porém, a um flatus mentis. A felicidade está para a mente como a miragem para a visão. Não existe oásis naquela zona do deserto mas o viajante vê-o, objectivamente.»

 

( Miguel Reale, Nova Teoria da Felicidade, Editora Dom Quixote, Março de 2013, pág. 92-93; o destaque a negrito é posto por mim).

 

É uma visão errada de Reale, unilateral, intelectualista, da felicidade, que é prazer (hedoné, em grego). O que é a «felicidade como ser ético»? Isto não é esclarecido. Miguel Reale parece não detectar que a saúde física - respirar e mover-se saudavelmente, saborear e digerir maçãs ou outros alimentos agradáveis ao paladar - é felicidade, isto é, prazer continuado. Parece ignorar que o acto sexual entre dois parceiros que se amam ou desejam intensamente é dez ou vinte ou trinta minutos de felicidade psicofísica que culmina no orgasmo. A felicidade existe a cada momento, misturada com um certo grau de infelicidade. É isso que Miguel Reale não consegue ou não quer ver.

 

Um amoroso não correspondido por uma mulher sente-se, afectivamente infeliz, e simultaneamente é feliz ao contemplar a bela paisagem de sobreiros ou ao beber uma cerveja ou comer uma iguaria e é sempre feliz - ainda que não se dê conta- a cada minuto que respira e se move com saúde. Para muitas pessoas, especialmente para os adolescentes, a saúde física não é uma ilusão, uma miragem,  mas um oásis permanente no deserto da vida.

 

O MAL É O ÚNICO CONCEITO ONTOLÓGICO REAL?

 

«10. Com excepção do mal, único conceito ético real, ontológico, todos os restantes conceitos éticos se estatuem como construções mentais culturais e civilizacionais (humanas, portanto). Bem, responsabilidade, dever moral, liberdade, justiça, culpa e perdão são meros flatus mentis, sem outra existência ôntica que a de prevenirem o domínio do mal no seio das sociedades.» 

(Miguel Reale, Nova Teoria da Felicidade, Editora Dom Quixote, Março de 2013, pág. 94; o destaque a negrito é posto por mim).

 

A visão antidialética de Miguel Reale é patente. Segundo ele, o ser é o mal e tudo o resto (regras morais, tribunais e sistema de justiça, etc.) é não-ser. Se há o mal, há igualmente o seu contrário, o bem, ao nível ontológico, profundo e principial. Se uma pessoa ajuda outra sem nada esperar em troca a não ser um sorriso isso prova que o bem é ontológico, tanto quanto o mal.

 

NÃO EXISTE SENTIDO ÚLTIMO DA VIDA?

Miguel Reale escreve:

«17. A máxima ilusão social: ser feliz.»

«18  Caracterizada desde Aristóteles como o sentido último da vida.»

«19. Porém, não existe sentido último da vida.».»

( Miguel Reale, Nova Teoria da Felicidade, Editora Dom Quixote, Março de 2013, pág. 98; o destaque a negrito é posto por mim).

 

Ao contrário de Reale, sustento que há um duplo sentido último da vida:

1) Ser feliz, realizar a felicidade, motor e sentido subjectivo de todos os seres humanos ( vivemos porque temos esperança de ser felizes amanhã e nos anos vindouros, felizes no amor, na saúde, no dinheiro, nas visitas ao estrangeiro, no trabalho; e se somos religiosos, vivemos para nos elevarmos a um mundo divino).

2) Cumprir a vontade do Zodíaco e da movimentação planetária que tudo comanda, motor objectivo, científico, dos estados de espírito e   actos humanos, e este segundo sentido escapa à vontade e à intencionalidade humana racional porque é pura predestinação em que se misturam a busca da felicidade e da infelicidade.

 

Como desconhece a astrologia científica a partir da qual se induz que tudo está predestinado, Miguel Reale ignora, como todos os académicos, o sentido real imanente da vida: ordem cósmica, em que uns (pessoas singulares, classes sociais, países, religiões, etc) sobem num prato da balança cósmica e outros (pessoas singulares, classes sociais, países, religiões, etc) descem no outro prato da mesma balança conforme a revolução dos planetas no círculo celeste.

 

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Domingo, 22 de Maio de 2011
Questionar Goodman e Carmo d´ Orey: é convencional a oposição entre realismo e idealismo?

No excelente prefácio a «Modos de fazer mundos»  do filósofo construtivista norte-americano Nelson Goodman, Carmo d´Orey, catedrático da Universidade de Lisboa, escreve:

 
«O mundo é feito por nós, afirma Goodman. Ou, mais precisamente, o nosso conhecimento consiste na construção de "versões-de-mundos". Goodman gosta de escrever assim para sublinhar que as nossas construções não são diferentes interpretações ou explicações de um mesmo único mundo pré-existente e independente delas, mas sim que construções e mundo são uma e a mesma coisa. Podemos por isso, dizer indiferentemente que fazemos mundos ou que fazemos versões, quando usadas separadamente, estas noções são quase sempre insubstituíveis.» (Carmo d´Orey in prefácio de Nelson Goodman, Modos de fazer mundos, pag 5, Edições Asa, 1995; o negrito é posto por mim).
 
«Uma vez que o mundo é construído é construído através de sistemas de símbolos, torna-se difícil inserir o ponto de vista de Goodman em qualquer esquema que pressuponha a distinção sujeito/objecto, portanto, no realismo ou no idealismo. O que consideramos mundo e o que consideramos discurso sobre o mundo depende das nossas convenções. Em rigor, não é possível traçar qualquer linha divisória entre os dois. Na prática, traçamo-la onde queremos e mudamo-la sempre que queremos. Num dos extremos temos o realismo, no outro o idealismo.» (Carmo d´ Orey, ibid, pag. 8; a letra negrito é de minha autoria).
 
Não é verdade que a diferença entre realismo e idealismo seja puramente convencional. Isso é o mesmo que dizer que é convencional a diferença entre o preto e o branco, entre a noite e o dia. Convencionais são os nomes, não as realidades ontológicas. Os nomes são interpretações, as realidades ontológicas, ideais ou materiais, são factos, que podem ser assumidos ou ignorados.
 
O que contesto é a frase: «em rigor, não é possível traçar qualquer linha divisória entre os dois.» É uma frase ambígua: incorrecta, do ponto de vista filosófico, metafísico; correcta, do ponto de vista do comportamento quotidiano prático, porque os idealistas evitam os choques eléctricos, as colisões de veículos e as quedas de janelas ou varandas do mesmo modo que os realistas.
 
 
NÃO HÁ DIFERENÇA ENTRE CONVENÇÕES E FACTOS?
 
Escreve ainda Carmo d´Orey explanando a tese de Goodman:
 
«Não há então qualquer diferença entre convenções e factos? Em absoluto, não. Dentro de cada versão sim e é muito importante. Adoptar um sistema consiste em adoptar uma convenção que fixa a referência dos seus seus termos. Essa convenção pode ser produto de habituação ou de estipulação. Mas, uma vez adoptado o sistema, o que uma coisa é torna-se uma questão de facto no âmbito desse sistema.»
«Para demarcar a sua posição quer do realismo quer do idealismo, Goodman denomina-a "irrealismo". Mas a denominação de "realismo interno", com o sentido que tem em Putnam, é também adequada.» (Carmo d´Orey in  prefácio de "Modos de fazer mundos", pag 8, Edições Asa; a letra a negrito é posta por mim).
 
Discordo da tese de Goodman de que não há, em absoluto, qualquer diferença entre factos e convenções, ou seja, de que tudo é convencional. Não é assim. As percepções empíricas - por exemplo, de árvores, de Grande Canyon nos EUA, de promontório de Sagres - não são convenções, são factos comuns a todos os observadores e encontram-se, ontologicamente, antes da convenção, isto é do acordo entre pessoas e comunidades para nomear ou interpretar algo. Convencional é chamar "promontório de Sagres" àquela massa rochosa altaneira com um forte no alto que confina com o mar no extremo sul ocidental de Portugal, mas a massa rochosa não é uma convenção - apenas o nome o é. Há pois um núcleo vastíssimo de factos não convencionais comuns a todos os mundos possíveis ou versões de mundos que, por isso mesmo, não ficam hermeticamente fechados e incomunicáveis entre si. O incêndio do Chiado, de 25 de Agosto de 1988, foi um facto que pode ser interpretado segundo as várias convenções ou leituras epistémico-ideológicas.
 
Por outro lado, se Goodman denomina a sua posição de "irrealismo" para a demarcar do realismo e do idealismo, comete um erro na taxonomia uma vez que o idealismo já é uma forma de irrealismo, sendo outra a fenomenologia.
 
 
O ANTI INTELECTUALISMO OPÕE A ARTE À CIÊNCIA?
 
Expondo a teoria de Goodman sobre a arte, escreve Carmo d´Orey:
 
«Admitida a nova epistemologia, a concepção anti-intelectualista, que opõe a arte à ciência, torna-se insustentável. Dicotomias vagas e obscuras, mas profundamente enraizadas, são superadas: não mais de um lado a beleza, a intuição e a emoção, e do outro, a verdade, a racionalidade e o saber. Porque nenhuma destas propriedades é privilégio da arte nem da ciência e todas são insuficientes para distinguir
uma da outra.» (Carmo d´Orey, ibid, pag 17).
 
A concepção anti-intelectualista opõe a arte a ciência? E por que não será a concepção intelectualista aquela que opõe a ciência à arte, dizendo que a arte é basicamente, sensação e percepção empírica e que a ciência é intelecto, raciocínio? Não se entende, com exactidão, o que Carmo d´Orey - que eventualmente estará correcto no seu raciocínio - pretende dizer com a "concepção anti intelectualista".
 
O CONHECER NÃO ASPIRA À CRENÇA?
 
Goodman é defensor de um pluralismo eclético - entendendo por ecletismo a doutrina que reune teorias diferentes e mesmo opostas entre si no seio do imenso oceano da verdade, feito de muitos mundos possíveis. Assim a teoria evolucionista de Darwin que faz derivar o homem de um antropóide situado geneticamente entre o gorila e o homem é, em princípio, tão aceitável como a teoria fixista criacionista de que Deus criou o homem e outros animais no sexto dia da Criação e estas espécies assim se mantiveram até hoje:
 
«O que tenho estado a dizer tem relação com a natureza do conhecimento. Nestes termos, conhecer não pode ser exclusivamente ou mesmo primeiramente uma questão de determinar o que é verdadeiro. A descoberta equivale frequentemente, como quando eu coloco uma peça num puzzle, não a chegar a uma proposição para declarar ou defender, mas a encontrar uma adequação. Muito do conhecimento aspira a algo que não à crença verdadeira nem a qualquer crença. (...)
«Mais ainda, se os mundos são tanto feitos quanto descobertos, assim também o conhecimento é tanto refazer como relatar. Todos os processos de feitura do mundo que discuti entram no conhecer. Perceber o movimento, vimo-lo, consiste frequentemente em produzi-lo. Descobrir leis envolve delineá-las. Reconhecer padrões é em em grande medida uma questão de os inventar e impor. A compreensão e a criação andam juntas.» (Nelson Goodman, Modos de fazer mundos, pag 60, Edições Asa; o negrito é colocado por mim)
 
Discordo de Goodman: todo o conhecer é um pôr da verdade, seja a verdade aparente ou interna, subjectiva ou objectiva - porque há uma verdade das aparências, como admitiam os cépticos pirrónicos - seja a verdade real e externa, hiperobjectiva. Todo o conhecimento aspira à crença - senão, aspira a quê? Goodman dá ao termo verdade um sentido unilateral: realidade externa, objectiva. Afirma que o conhecimento é compreensão, não captação da verdade. Mas a compreensão é sempre a captação de uma verdade imaginária, uma verdade que reside no reino da imaginação e tem bases no mundo da percepção empírica

 

 

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Terça-feira, 29 de Maio de 2007
É o emotivismo um relativismo? (Crítica de Manuais Escolares-XXII)

O conceito de emotivismo dentro da axiologia está envolto na névoa da confusão, em particular nos manuais escolares de filosofia.

Um manual de filosofia do 10º ano de escolaridade português, da Santillana-Constância, afirma o seguinte:

 

«O emotivismo

 

«Esta teoria sobre os juízos de valor é, na verdade, um aperfeiçoamento ou radicalização do relativismo. Segundo ela, os juízos de valor nem sequer são verdadeiros juízos. Eles não fazem qualquer afirmação sobre o modo a realidade é, foi ou será. São apenas expressão de sentimentos ou reacções emotivas a certos objectos ou acontecimentos.»

«Por exemplo, o juízo «a pena de morte é injusta» parece uma afirmação sobre a propriedade (negativa) do acto de condenar alguém à pena de morte. Mas, para o emotivista, é algo comparável a um grito de dor ou desgosto, ou ao choro, que exprimem directamente emoções pessoais face ao acto ou ao conceito do acto, mas não afirmam propriamente nada. E expressões de emoção não podem ser verdadeiras nem falsas, mas apenas sinceras ou fingidas

«...Por vezes, defende-se, nesta linha, que  nós projectamos valores para o mundo, não sendo eles, na verdade, nada de natural fora de nós. Seja como for, toda a discussão sobre valores é vã, porque não há nem pode haver maneira de decidir o que é a verdade em matéria de valores.»

 

(in Logos,  de António Lopes e Paulo Ruas, consultor científico: António Pedro Mesquita, Santillana-Constância, Lisboa 2007, pag 93; o negrito é da nossa autoria).

 

Que confusões há aqui?

 

Em primeiro lugar, é erróneo dizer que «as expressões de emoção não podem ser verdadeiras nem falsas». É colocar a verdade exclusivamente ao nível do juízo, da operação intelectual de ligação entre conceitos. As emoções, tal como as sensações visuais, táteis e auditivas, comportam um certo grau de verdade. A emoção faz parte da verdade da vida de cada um e das sociedades em geral, quotidianamente, a cada instante. A verdade estrutura-se não apenas ao nível do juízo, mas também do conceito, e ao nível da percepção empírica e da emoção. Se as expressões de emoção se exprimem vocabularmente por meio de juízos (exemplo: «Detesto esta paisagem de prédios urbanos, comovo-me ao ler os versos que escreves)é óbvio que recebem um valor de verdade ou de falsidade. Ora o emotivismo limita-se a explicar a génese de juízos: a emoção. Mas explicar essa génese irracional não anula a forma racional, susceptível de receber valor de verdade, desses juízos.

 

Em segundo lugar, apresenta-se o emotivismo como uma «radicalização do relativismo», o que é também erróneo. Há um emotivismo (seria melhor dizer: um descritivismo de génese emotiva..) absolutista, não relativista, expresso, por exemplo, neste juízo: «O amor entre cônjugues é um sentimento maravilhoso, desde a mais remota Antiguidade até hoje e sempre assim será».

Presumivelmente, os autores do manual entendem relativismo como cepticismo, impossibilidade de conhecimento, tal como a generalidade dos actuais "filósofos analíticos". Mas relativismo não é isso: é variabilidade de valores ou de um mesmo conceito, segundo as épocas, as classes sociais, os lugares, podendo gerar cepticismo em alguns. O relativismo não é cepticismo. É um chão do qual pode brotar cepticismo.

 

Em terceiro lugar, não é verdade que o emotivismo em geral sustente a tese de que «não pode haver maneira de decidir o que é a verdade em matéria de valores.» Isto só é verdade para o emotivismo subjectivista timbrado de cepticismo, mas não para o emotivismo objectivista (exemplo: «Os primeiros dias após 25 de Abril de 1974, data do derrube do fascismo em Portugal, foram de júbilo para a grande maioria da população, os melhores dias da nossa vida colectiva») nem para o emotivismo subjectivista dogmático (Exemplo deste último: «Na minha opinião, sofre um traumatismo maior a criança de 13 anos abusada por um pedófilo do que a criança de 4 anos abusada pelo mesmo pedófilo, portanto, é mais horrível o primeiro caso do que o segundo»).

 

Emotivismo diz respeito à matéria-prima de que são forjados os valores - as emoções (amor-paixão, ódio, caridade, etc) - mas não significa a validade temporal ou geográfico-cultural limitada dos valores, isto é, o relativismo. São géneros distintos que se intersectam. Há emotivismo relativista e há emotivismo absoluto ou absolutista.

 

O Manual «A arte de Pensar» da Didáctica reza assim:

 

«O emotivismo partilha com o subjectivismo a ideia de que não existem verdades morais independentes dos sujeitos individuais e de que os juízos morais derivam dos sentimentos que cada pessoa possui àcerca de determinado assunto. Todavia, os emotivistas vão mais longe, pois afirmam que, quando usamos a linguagem moral, estamos apenas a expressar emoções e a tentar convencer os outros a agir de uma certa maneira»

 

(Aires Almeida, António Paulo Costa, Célia Teixeira, Desidério Murcho, Paula Mateus, Pedro Galvão, in A Arte de Pensar, Filosofia 10º ano, 1º volume, Didáctica Editora, Lisboa 2003, página 96; o negrito é nosso).

 

Também neste manual se interpreta erroneamente emotivismo como sujectivismo, ignorando que há um emotivismo objectivista, universalizado (exemplo: «É horrível se houver um planeta que choque com a superfície da Terra»; «Foi terrível o tsunami no Pacífico, na Ásia, em 26 de Dezembro de 2004, que matou no mínimo umas 220.000 pessoas»).

 

Aliás os autores da «Arte de Pensar», tributários de alguma filosofia norte-americana analítica, citam um autor da universidade de John Carroll em Cleveland, Harry Gensler, para definir erroneamente emotivismo:

 

«Supõe que dizes «Brrr!» quando tremes de frio. O teu «Brr!» não é literalmente verdadeiro nem falso; seria despropositado responder-lhe dizendo «Isso é verdade». Mas supõe que dizes: «Eu sinto frio». Neste caso, estás a dizer uma coisa verdadeira, uma vez que realmente sentes frio. Um juízo moral é (para o emotivista) como «Brrr!» (que expressa os teus sentimentos) e não como «Eu sinto frio» (que é uma afirmação verdadeira àcerca dos teus sentimentos).»

«Esta distinção permite-nos evitar alguns problemas que o cepticismo enfrenta. Supõe que Hitler, que gosta que se matem judeus, diz «A morte dos judeus é boa». De acordo com o subjectivismo a afirmação de Hitler é verdadeira (uma vez que significa apenas que ele gosta que se matem os judeus). Isto é bizarro. (Os emotivistas pensam) que a afirmação de Hitler é uma exclamação («Urra para a morte dos judeus!») e que por isso não é verdadeira nem falsa. Não se pode dizer que o juízo moral seja falso, mas pelo menos não temos de dizer que é verdadeiro.»  (Harry Gensler, Ethics, 1998, pag. 62, citado in «A arte de pensar, Filosofia 10º ano», volume 1, página 97).

 

A mediocridade de raciocínio de Harry Gensler, e dos seus epígonos,  é notável: classifica o emotivismo ou emocionalismo como um behaviorismo (doutrina da redução da inteligência e dos seus conceitos a respostas automáticas, psicofisiológicas, ante estímulos exteriores) axiologicamente neutro, céptico, esquecendo que há muito mais emocionalismo além dessa modalidade restrita. É de tal forma idiota a argumentação de Gensler que chega ao ponto de considerar que o behaviorismo emotivista (no caso: Urra para a morte dos judeus!) supera o subjectivismo de Hitler ( no exemplo: É bom matar judeus, vamos exterminá-los) só pelo facto de este último receber uma formulação lógica convencional e o primeiro ficar na linguagem emotiva abreviada. É o logicismo estreito de quem entende que «algo só é verdade ou mentira quando formulado como juízo, de forma lógica»...

 

Aliás, quando Gensler diz no texto acima «de acordo com o subjectivismo, a afirmação de Hitler é verdadeira» denota algum magma de confusão: a afirmação de Hitler é verdadeira.. para a subjectividade de Hitler. Há muito sujectivismo contrário ao subjectivismo nazi e anti semita de Hitler pelo que a afirmação de Gensler «de acordo com o sujectivismo, a afirmação de Hitler é verdadeira»  é errónea. Não há, uma noção unívoca de verdade, ainda que as várias noções de verdade possuam algo em comum. A incapacidade de descentrar o subjetivismo em infinitos polos (perspetivismo) é uma característica deste raciocínio de Gensler.

 

O emotivismo ou emocionalismo, formulado na época contemporânea por Stevenson e, antes dele, por  Max Scheler ( Os valores são «qualidades que se nos tornam presentes directamente no nosso "sentir intencional" (intentionales Fuhlen) do mesmo modo que as cores na visão»- Ethik, in Jarhbücher der Philosophie, 2º ano, Berlim, 1914, pag 91) é diferente desta medíocre definição que Gensler e os manuais «Arte de pensar» e «Logos» fornecem aos estudantes de filosofia.

 

O emotivismo não é senão uma das doutrinas àcerca da origem dos valores - o equivalente ao empirismo como doutrina sobre a origem do conhecimento. Contrapõe-se ao intelectualismo, facto que estes manuais que referimos e outros nem sequer se dão conta, falhos que estão de uma sistematização correcta de conceitos.

 

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