Domingo, 21 de Fevereiro de 2021
Equívocos no manual «Preparar o exame nacional de filosofia 11º» (Crítica de Manuais Escolares LX)

 

O manual da Areal «Preparar para o exame nacional Filosofia 11º» de Lina Moreira e Idalina Dias alberga, a par de muitas definições correctas e úteis, vários erros relevantes

 

UMA ERRÓNEA DISTINÇÃO ENTRE DETERMINISMO MODERADO E LIBERTISMO

 

As autoras perfilham a confusão teórica da filosofia analítica em voga separando libertismo de determinismo moderado, sem perceberem que o libertismo é género onde cabem duas espécies: o determinismo moderado pelo livre-arbítrio e o indeterminismo moderado pelo livre-arbítrio. Em ambas estas o livre-arbítrio impera sobre as leis ou acasos da natureza. 

 

Escrevem as autoras: 

«O libertismo é uma das teorias filosóficas que afirma a existência e o primado do do livre-arbítrio na ação humana. Neste sentido, considera que, face às mesmas circunstâncias, o ser humano escolhe livremente entre as várias possibilidades que tem diante de si, o que significa, recuperando o exemplo, que poderíamos ter saído pela janela ou escolhido agir de outra forma. Tal significa o reconhecimento de que, perante a mesma circunstância, havia mais do que uma ação possível, que o agente escolheu uma de várias possibilidades». 

LINA MOREIRA e IDALINA DIAS, «Preparar para o exame nacional Filosofia 11º» , Areal Editores,página 69.

 

Esta definição é exatamente a mesma de determinismo moderado, doutrina segundo a qual o universo é regido por leis biofísicas invariáveis (nascimento, crescimento, estado adulto jovem, envelhecimento e morte dos seres vivos; translação da Terra em torno do Sol em 365 dias, etc.) mas o ser humano dispõe de livre arbítrio, capacidade de escolha racional entre as alternativas de ação a cada momento.

 

O erro das autoras e de todos os manuais de filosofia do ensino secundário e de John Searle e Simon Blackburn está em supor que o determinismo moderado, pelo facto de admitir que há leis biofísicas necessárias, infalíveis, reduz o grau de livre arbítrio nos seres humanos quando é exatamente o contrário que sucede: Sartre escreveu que «nunca fomos tão livres como sob a ocupação alemã», de 1940 a 1944, porque cada francês podia escolher a resistência ou a colaboração com o nazismo.  A pressão das leis físicas infalíveis (determinismo) não reduz, aumenta o livre-arbítrio, que é uma deliberação racional (libertismo). Há maior liberdade no determinismo biofísico com livre arbítrio (determinismo moderado) - porque se escolhe conhecendo as leis da natureza física - do que no indeterminismo biofísico (inexistência de leis necessárias, imprevisibilidade) com livre arbítrio que as autoras, Simon Blackburn e as universidades confusamente batizam de libertismo.

 

O libertismo, segundo o conceito em voga dos manuais, é a tendência de livre escolha sem levar em conta as cadeias do determinismo biofísico em que estamos imersos (estado do corpo: fome, frio, saciedade; situação económica: salário ou outro rendimento, carreira profissional, bens imóveis e móveis; situação política: sociedade aberta ou totalitarismo, etc.) Mas essa tendência libertista não é livre-arbítrio porque lhe falta a racionalidade que só existe quando se observa e leva em conta a situação concreta, o mundo físico e as suas condicionantes. Como diria Hegel «a liberdade é a consciência da necessidade», não é o impulso do louco que se julga livre e age irracionalmente. Já Aristóteles notara a diferença entre livre escolha ditada pelo instinto animal e livre-arbítrio.

 

A CONFUSA NOÇÃO DE INCOMPATIBILISMO E A CONFUSÃO DE DETERMINISMO RADICAL COM FATALISMO

 

Escrevem as autoras:

«A resposta à questão "Será o ser humano efetivamente livre na sua ação?" não é consensual entre os filósofos. Uns consideram que o livre-arbítrio não é compatível com o determinismo - incompatibilismo - outros afirmam o contrário -compatibilismo

«Tanto o libertismo como o determinismo radical são teorias incompatibilistas.»

LINA MOREIRA e IDALINA DIAS, «Preparar para o exame nacional Filosofia 11º» , Areal Editores,páginas 68 e 69.

 

É evidente que o determinismo moderado compatibiliza o livre-arbítrio com o determinismo. Ambos existem no mesmo ser humano adulto. ´Por que razão o libertismo seria um incompatibilismo se há compatibilidade entre o livre-arbítrio e o indeterminismo biofísico (exemplo: surge um dia de queda de neve em pleno verão de Julho no Alentejo e este libertismo da natureza é compatível com o meu livre-arbítrio pois posso escolher entre ficar na praia a receber a neve ou refugiar-me dentro de uma habitação)? É uma tolice dizer que, no seu todo, o libertismo é uma teoria incompatibilista quando ele engloba o determinismo moderado que é, em si mesmo, compatibilismo e o indeterminismo biofísico com livre-arbítrio que é também, em si mesmo, compatibilismo.

 

O libertismo, como género de duas correntes e não na errónea noção deste manual,  é incompatível com o fatalismo - doutrina segundo a qual tudo está predestinado e não há livre-arbítrio real e que não é o mesmo que determinismo radical, coisa de que este e os outros manuais não se apercebem -  com o determinismo radical (exclusão do livre arbítrio, leis biofísicas necessárias compatíveis com um certo grau de acaso) e com o indeterminismo radical (exclusão do livre arbítrio, inexistência de  biofísicas necessárias, pura arbitariedade no mundo natural) .

 

Se há determinismo radical deveria também postular-se que há indeterminismo radical ou indeterminismo biofísico sem livre-arbítrio mas a inteligência dos filósofos analíticos não chega a tanto. No seu «Dicionário Oxford de Filosofia» Simon Blackburn divide confusamente esta temática em 4 correntes - determinismo radical, determinismo moderado, libertismo, indeterminismo - sem perceber que fatalismo se distingue de determinismo radical , que determinismo moderado se inclui no libertismo tal como o indeterminismo moderado com livre-arbítrio. Blackburn nem sequer conceptualiza que há dois tipos de indeterminismo: moderado (com livre-arbítrio) e radical (sem livre-arbítrio).Só tipos confusos, pensadores de segunda classe como este, com doutoramentos (!) em filosofia universitária,  são editados e promovidos pelos media como sendo os filósofos actuais...

 

NO SUBJECTIVISMO AXIOLÓGICO UMA OPINIÃO VALE O MESMO QUE A SUA CONTRÁRIA?

 

Escrevem as autoras:

«Para o subjectivismo, não existe um conceito universal de bem e de mal, mas tantos quantos os indivíduos. Se assim é, uma opinião vale o mesmo que a sua contrária.»

Lina Moreira e Idalina Dias, «Preparar para o exame nacional Filosofia 11º» , Areal Editores,página 84.

 

Isto não é correto. Para cada subjetivista, a sua opinião vale mais que as contrárias, ainda que possa admitir ou não algum grau de verdade nestas. É aquilo que Nietzsche designa de perspectivismo: vemos o mundo, a paisagem de uma dada maneira, a partir de um ponto de observação, e a visão seria outra se mudassemos o lugar de onde observamos. Tome-se como exemplo a opinião sobre a eutanásia. Um cristão adverso a esta prática dirá: «É subjectivo saber quem tem razão, há argumentos a favor e contra, a minha intuição diz-me que eutanásia é um assassinato legal, ofende a Deus, que deseja cuidados paliativos nos hospitais e não extinção provocada da vida humana».

 

As definições erróneas contidas neste manual e nos outros estão presentes sempre, ano a ano, no exame nacional de filosofia do 11º ano do ensino secundário em Portugal. O lóbi da filosofia analítica (Manuel Maria Carrilho, João Branquinho, Guido Imaguirre, Ricardo Santos, Desidério Murcho, João Sáagua, Pedro Galvão, Rolando Alneida, António Pedro Mesquita, Domingos Faria, Célia Teixeira, Aires Almeida, etc.) devia ser afastado da autoria dos exames nacionais porque pensa, avalia e ensina mal, promove como «ciência» uma ridícula lógica proposicional que defende que o juízo «Sou português ou sou espanhol» merece uma tabela de verdade diferente do juízo «Ou sou português ou sou espanhol» quando dizem exactamente o mesmo, são o mesmo no conteúdo. Estamos, na área da filosofia, sob uma ditadura da filosofia analítica norte-americana e britânica mantida por pensadores de segunda e terceira classe.

 

 

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Nota- O autor deste blog está disponível para ir a escolas e universidades dar conferências filosóficas ou participar em debates. 

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Domingo, 9 de Agosto de 2020
A essência como conceito em Hegel

 

Hegel define a essência não como a forma comum a diversos objectos ou qualidades, como o faria Aristóteles, mas como um conceito do entendimento. A forma como objecto sensível precede a essência, que é um segundo momento sensório-intelectual. Na verdade, a essência, por exemplo,  de uma cadeira não é apenas a forma que vemos mas também a forma  que está oculta e que recordamos ou idealizamos: se vejo a frente da cadeira, não vejo, nesse momento, a parte de trás e tenho de idealizá-la, ter um conceito dela. Hegel escreveu: 

 

«Se considerarmos o primeiro universal como o conceito do entendimento, no qual a força não é ainda para si, o segundo será agora a sua essência, tal e como se apresenta em e para si. Ou, pelo contrário, se considerarmos o primeiro universal como o imediato, que devesse ser um objecto real para a consciência, temos que o segundo se acha determinado como o negativo da força sensível objectiva; é a força tal e como é na sua verdadeira essência, somente enquanto objecto do entendimento; aquele primeiro seria a força repelida para si mesma ou a força como substância; este segundo, ao invés, o interior das coisas como interior, que é o mesmo que o conceito como conceito.»

(G.W.F. Hegel, Fenomenología del espíritu, Fondo de Cultura Económica, México, 2007, pag. 88)

 

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Quarta-feira, 12 de Junho de 2019
Hegel: clareza e obscuridade nos seus textos

 

Há teses de Hegel que são notáveis e compreensíveis na Fenomenologia do Espírito, como por exemplo a seguinte:

 

«O verdadeiro é o todo. Mas o todo é somente a essência que se completa mediante o seu desenvolvimento. Do absoluto, há que dizer que é essencialmente resultado, que só no final é o que é de verdade, e em isso precisamente estriba a sua natureza, que é a de ser real, sujeito ou devir de si mesmo. »

(G.W.F. Hegel, Fenomenología del espíritu, Fondo de Cultura Económica, México, 2007, pág. 16; o destaque a negrito é colocado por nós).

 

Hegel sustenta que no princípio está o Espírito, o mais universal de tudo. Adiciona ao teísmo da primeira fase do Espírito, o panteísmo da segunda fase (Deus é as árvores, os rios, as plantas e os animais «irracionais») e o panenteísmo da terceira fase (Deus é a humanidade nos seus diferentes povos e tipos de estado, de arte, de religião e de filosofia, evoluindo para a liberdade e ao mesmo tempo Deus é espírito puro, transcendente, no Além). O resultado acima referido é a terceira fase, a da humanidade, que resulta da união e síntese entre a fase de Deus pensante e a fase de Deus impensante, alienado em natureza física em corpos físicos.

 

Hegel fala de quatro etapas na fenomenologia do Espírito, isto é, nas sucessivas formas que este vai assumindo: consciência, autoconsciência, razão e espírito. Ponho reservas a esta divisão: a autoconsciência já é, em si mesma, razão. Hegel dá a seguinte definição de autoconsciência:

 

«Mas de facto, a autoconsciência é a reflexão, que desde o ser do mundo sensível e percebido, é essencialmente o retorno a partir do ser outro. Como autonsciência é movimento(....) A diferença não é, e a autoconsciência é somente a tautologia sem movimento do eu sou eu.»

 

(G.W.F. Hegel, Fenomenología del espíritu, Fondo de Cultura Económica, México, 2007, pág. 108; o destaque a negrito é colocado por nós).

 

Fixemo-nos: quando Descartes intui «eu penso logo existo» isso é autoconsciência; quando Albert Camus infere que a vida humana é destituída de sentido pois não há Deus nem é possível garantir o triunfo perene da verdade e da justiça para toda a humanidade isso é autoconsciência.

 

Mas há numerosos parágrafos da Fenomenologia que são ambíguos devido às múltiplas divisões que ele introduz no mesmo conceito tipo bonecas russas Matrioska, umas dentro das outras. Veja-se  por exemplo, esta passagem em que se refere à substância ética:

 

«A substância é, deste modo, espírito, unidade autoconsciente do si mesmo e da essência; mas ambos têm também o significado da estranheza de um face ao outro. O espírito é consciência de uma realidade objectiva para si livre; mas a esta consciência se enfrenta àquela unidade do si mesmo e da essência, à consciência real se enfrenta a consciência pura. Por um lado, mediante a sua alienação,  a autoconsciência real passa ao mundo real e este retorna àquela; mas, por outro lado, superou-se precisamente esta realidade, a pessoa e a objectividade. Esta estranheza é a pura consciência ou essência

(G.W.F. Hegel, Fenomenología del espíritu, Fondo de Cultura Económica, México, 2007, pág. 287; o destaque a negrito é colocado por nós).

 

Na primeira frase da citação acima a substância aparece como a unidade entre o si mesmo e a essência. Ora o que é o si mesmo senão o espírito do indivíduo? Neste caso, a essência terá de ser a objectividade, a realidade, o bem e o mal que se encontram fora da consciência. Mas na última frase da citação Hegel muda o significado de essência, que no início era lei exterior, realidade exterior para... consciência pura. Não bate certo.

(G.W.F. Hegel, Fenomenología del espíritu, Fondo de Cultura Económica, México, 2007, pág. 108; o destaque a negrito é colocado por nós).

 

Estamos pois perante um exercício de sofística em que Hegel, sem embargo do seu brilhantismo, é pródigo.

 

AUTOCONSCIÊNCIA EM GERAL E AUTOCONSCIÊNCIA LIVRE, O PARADOXO DE "O SER SÓ PARA A CONSCIÊNCIA" SER SIMULTÂNEAMENTE "REAL EM SI MESMO"

 

Vejamos um entre muitos exemplos da falta de clareza, ou pelo menos da falta de concreção do pensamento de Hegel:

 

«A razão é a certeza da consciência de ser toda a realidade; de este modo exprime o idealismo o conceito da razão. Do mesmo modo que a consciência que surge como razão abriga de um modo geral imediato esta certeza, assim também o idealismo a exprime de modo imediato; eu sou eu, no sentido, no sentido de que o eu que é o meu objecto, é objecto com a consciência do não ser de qualquer outro objecto, é objecto único, é toda a realidade e toda a presença, e não como na autoconsciência em geral, nem tão pouco como na autoconsciência livre, já que ali é só um objecto vazio em geral e aqui somente um objecto que se retira dos outros que continuam a governar junto dele. Mas a autoconsciência só é toda a realidade não somente para si mas também em si ao devir esta realidade ou mais exactamente ao demonstrar-se como tal. E se demonstra assim no caminho pelo qual, primeiro no movimento dialétco da suposição, da percepção e do entendimento , o ser outro desaparece como em si, e logo no movimento que passa pela independência da consciência no senhorio e na servidão, pelo pensamento da liberdade, a libertação céptica e a luta da libertação absoluta da consciência desdobrada dentro de si, o ser outro enquanto é para ela, desaparece para ela mesma. Apareceriam sucessivamente dois lados, um em que a essência ou o verdadeiro tinha para a consciência a determinabilidade do ser e outro em que a sua determinabilidade era ser somente para elaMas ambos os lados se reduziam a uma verdade, a de que o que é ou o em si só é enquanto é para a consciência e o que é para ela é também em si

(G.W.F. Hegel, Fenomenología del espíritu, Fondo de Cultura Económica, México, 2007, pág. 144; o destaque a negrito é colocado por nós.)

 

Percebe-se neste texto o que significa a tese de Hegel de que no idealismo «o ser outro desaparece como em si»: no idealismo material ou ontológico, a árvore, a casa ou o cão que em relação a mim são ser outro  que desaparecem em si, isto é, desaparecem como realidades independentes de mim, reduzem-se a simples ideias na minha mente que é o universo inteiro.  Mas Hegel não define o que é a autoconsciência livre - é o pensamento de alguns filósofos destacados do vulgo?- e em que se distingue da autoconsciência em geral - esta já sabemos ser reflexão e não absorção acrítica das percepções do mundo exterior.

 

A última frase do texto «Mas ambos os lados se reduziam a uma verdade, a de que o que é ou o em si só é enquanto é para a consciência e o que é para ela é também em si.» é em si mesma um paradoxo: Hegel começa por dizer que o que é ou existe só é para a consciência - posição do idealismo e da fenomenologia: a árvore que vejo só é real para a minha consciência - e depois contradiz-se ao dizer que o que existe para a consciência existe também em si mesmo, como realidade independente - posição do realismo: a árvore está fora da minha mente e subsiste quer eu a veja e pense ou não.

 

O ESPÍRITO, SUBSTÂNCIA ÉTICA, VERSUS A SUBSTÂNCIA QUE SÓ SURGE NELE QUANDO O ESPÍRITO AGE

 

Ideias que Hegel repete são a do desdobramento da consciência e a da luta entre a essência e a autoconsciência, entre o universal e o singular. Hegel define o espírito assim, ora identificando-o como substância ora diferenciando-o desta:

 

«Mas a essência que é em si e para si e que ao mesmo tempo é ela mesma real como consciência e se representa a si mesma é o espírito

«A sua essência espiritual já foi definida como a substância ética; mas o espírito é a realidade ética. É o si mesmo da consciência real, à qual se enfrenta, ou que mais precisamente se enfrenta a si mesma, como mundo real objectivo, o qual, sem embargo, perdeu para si mesmo toda a significação de algo estranho, do mesmo modo que o si mesmo perdeu toda a significação de um ser para si, separado, dependente ou independente de aquele.  O espírito é a substância e a essência universal, igual a si mesma e permanente - o inabalável e irredutível fundamento e ponto de partida do agir de todos - e o seu fim e a sua meta, como o em si  pensado de toda a autoconsciência».

 (G.W.F. Hegel, Fenomenología del espíritu, Fondo de Cultura Económica, México, 2007, pp. 259-260; o destaque a negrito é colocado por nós.)

 

Esta passagem, relativamente obscura - Como é que o si mesmo perdeu toda a significação de um ser para si? Refere-se a quando Deus se alienou em natureza física e deixou de pensar? -  está em contradição com a seguinte:

 

«Na sua verdade simples, o espírito é consciência e desdobra os seus momentos. A ação cinde-o em substância e em consciência da mesma, e cinde tanto a substância como a consciência. A substância, como essência universal e como fim, enfrenta-se consigo mesma como a realidade singularizada...»

(G.W.F. Hegel, Fenomenología del espíritu, Fondo de Cultura Económica, México, 2007, pág. 261; o destaque a negrito é colocado por nós.)

 

A incoerência está em considerar o espírito como substância ética, depois como realidade ética e por último dizer que o espírito é apenas consciência e só a ação o cinde  em substância e consciência de esta. Substância era qualidade do espírito, eterno e imóvel, tese primeira, mas só surge quando o espírito se põe em ação e divide em substância e consciência, tese segunda. Há aqui imprecisão conceptual.

 

O espírito é o quarto degrau mas engloba os outros três degraus. Há aqui uma visão eclética, algo confusa: espírito é tomado em dois sentidos diferentes, ora como consciência em geral, mesmo não ética, ora como essência ética:

 

«Aqui, onde se põem o espírito ou a reflexão de estes momentos em si mesmos, a nossa reflexão a respeito deles pode recordá-los brevemente conforme a este lado; os ditos momentos eram a consciência, a autoconsciência e a razão. O espírito é pois consciência em geral, que abarca em si a certeza sensível, a percepção e o entendimento»

(G.W.F. Hegel, Fenomenología del espíritu, Fondo de Cultura Económica, México, 2007, pág. 26o; o destaque a negrito é colocado por nós.)

 

Há falta de concreção no pensamento hegeliano, oscilações de vagueza em conceitos como essência, substância, ser em si, ser para si. Talvez por isso Schopenhauer classificasse Hegel de «charlatão», do mesmo modo que nós acusamos Heidegger de um certo grau de charlatanismo retórico em O Ser e o Tempo.

 

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Domingo, 26 de Maio de 2019
Ortega y Gasset revive Hegel: a costa marítima é o grande princípio libertador

 

José Ortega y Gasset, (9 de Maio de 1883, Madrid; 18 de Outubro de 1955),  o grande representante da fenomenologia na filosofia espanhola do século XX, era um filósofo de vocação holística: tal como Hegel, aplicava o princípio hermético das correspondências de que «o microcosmos é espelho do macrocosmos». Reeditando o pensamento de Hegel, filósofo adverso à filosofia analítica,  neste caso porque estabelece correlações entre o geográfico e o histórico-social, o que os filósofos analíticos não concebem, escreveu:

 

«Segundo Hegel, há três tipos de terra para os efeitos históricos - o que eu chamaria três paisagens - o planalto, o vale fecundo, a costa. Esta divisão foi inspirada pela consideração de que o nosso planeta não é só terra, mas também água. »

(José Ortega y Gasset, Ideas y creencias y otros ensayos, Alianza Editorial, Madrid, 2019, pág. 86; o destaque a negrito é posto por nós).

 

«Há, segundo Hegel, três configurações topográficas, três princípios geomórficos que condicionam três tipos de vida natural às quais correspondem três estádios, ou formas do Espírito, quer dizer, do Estado. Um é a meseta, o enorme planalto. O seu tipo vital é o nomadismo. A existência neste país seco é pobre, mas ademais não está limitada por nenhuma contenção especial. Viver é vagabundear. Hoje está.se em um lugar, amanhã em outro. Não há nenhuma força que obrigue à convivência. O homem sente ímpetos de empresa, mas descontínuos e informes, imprecisos. O único que lhe pode ocorrer é lançar-se para diante, sem rumo, sem meta, sem desígnio preformado. Nestas condições não é possível o nascimento da lei, do Estado, que implica convivência estabilizada. Há só a momentânea organização da guerra sob um caudilho genial que reúne as hordas normalmente dispersas e cai com elas sobre as terras férteis.» (José Ortega y Gasset, ibid, pp.89-90).

 

A configuração geográfica da Terra é, tal como as formas de Estado,  fruto do Espírito ou Ideia Absoluta que é Deus. Segundo Hegel, Deus ou Ideia Absoluta é o arquitecto e, simultaneamente, a argamassa da História Universal. Para Hegel, o correr dos rios, o crescer das plantas, o nascer e o pôr do sol são raciocínios de Deus alienado em natureza biofísica, em universo material, na fase do Ser fora de Si. Prossegue Ortega: 

 

«A meseta termina em ladeiras onde os rios evacuaram os vales. Às vezes estas ladeiras confinam imediatamente com o mar: Perú, Chile, Ceilão. Não formam, portanto, um âmbito suficiente para constituir um novo tipo de vida. Ao contrário, os vales compridos - Mesoptâmia, Egipto, China - representam um novo princípio geohistórico. O vale é uma unidade completa, fechada em si, independente, não como a meseta, que é a independência inconcreta do que não tem limites e não é nada determinado. O planalto não tem estrutura porque é sempre igual a si mesma. O vale tem uma organização diferenciada: o rio e as suas duas ribeiras. É ademais, a terra mais fértil. A agricultura surge nele, e com ela a propriedade,  as diferenças de classe, em suma, as normas jurídicas. A agricultura não é uma actividade momentânea, explosiva e de acaso como o puro belicismo do nómada. Tem de reger-se segundo o ciclo das estações e é, em si mesma, regime geral e não caprichoso. Por outro lado, o vale obriga à convivência que é, por sua vez, impossível sem modos gerais de conduta, quer dizer, sem um Estado, sem um império das leis. Eis aqui como todos estes caracteres telúricos do vale preformam um tipo de vida que já não é a vida meramente natural, mas uma vida conforme a normas, na qual aquele se vem encaixar. Essa sobrevida normativa é precisamente o Espírito. »

 

«Mas o vale fixa o homem ao terreno: limita-o, torna-o dependente de um sistema pouco variado de condições. De aqui que estas civilizações fluviais tenham girado eternamente sobre si mesmas, reclusas em um reportório de temas, de modos, de intentos, de normas. São culturas "hieráticas", quer dizer rígidas: a egípcia, a chinesa. O grande princípio libertador é a costa, onde combate a intensa dualidade da terra e do mar. "O mar dá sempre lugar a um tipo de vida peculiar. O elemento indeterminado dá-nos uma imagem do ilimitado e infinito, e ao sentir-se nele o homem anima-se para o mais além sobre toda a limitação. O mar suscita o valor; incita o homem à conquista e à rapina, mas também ao lucro e à indústria. O trabalho industrioso refere-se àquela classe de fins que se chamam necessidades.  Contudo, o esforço para satisfazer estas necessidades traz consigo que o homem fique enterrado em esse ofício. Mas, quando a indústria passa pelo mar, a relação transforma-se. Os que navegam pretendem certamente ganhar, lucrar, satisfazer as suas necessidades; mas o meio para isso inclui neste caso o contrário do propósito com que se escolheu, a saber: o perigo". (1) A vida marítima é um constante risco de perder-se a si mesma. É livre diante de si mesma e implica serenidade e astúcia incessantes. Por tudo isso tem um claro sentido de criação e foi em qualquer parte o mar o grande educador para a liberdade. O mar é um perpétuo "mais além da limitação da terra". É o verdadeiro "espírito da inquietação" que do seu movimento elementar passa para as almas dos seus moradores e faz do existir uma permanente criação».

 

(José Ortega y Gasset, Ideas y creencias y otros ensayos, Alianza Editorial, Madrid, 2019, pp. 91-93; o destaque a negrito é posto por nós).

 

Sobre estas últimas frases de Ortega interrogamo-nos: não será o facto de a Grã-Bretanha ser uma grande ilha cercada de mar por todo o lado que lhe conferiu o papel de potência dissonante, refúgio da liberdade, desde os tempos míticos do Rei Artur e da Távola Redonda passando pelos alvores do parlamentarismo moderno até à segunda guerra mundial em que resistiu à Luftwaffe, a aviação alemã, e até hoje em que ensaia sair da União Europeia tutelada pela Alemanha e a França? E a liberdade de Portugal como país independente que a Espanha sempre quis anexar não se deverá à costa marítima portuguesa onde se situam as cidades principais, Lisboa e Porto, e à proximidade com a grande ilha que é a Grã-Bretanha?

 

NOTA 1-O texto que começa em "O mar dá sempre lugar a um tipo de vida peculiar" e termina em  "propósito com que se escolheu, a saber: o perigo" é uma citação de Hegel.

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Terça-feira, 13 de Dezembro de 2016
Teste de Filosofia do 11º ano de escolaridade (6 de Dezembro de 2016)

 

Eis um teste de filosofia do 11º ano de escolaridade, o último do primeiro período lectivo.

 

Agrupamento de Escolas nº1 de Beja Escola Secundária Diogo de Gouveia, Beja TESTE DE FILOSOFIA, 11º ANO TURMA A

6 de Dezembro de 2016. Professor: Francisco Queiroz

I

“Alguns diretores de cinema são norte-americanos.

Alguns norte-americanos são racistas.

Os racistas não são directores de cinema.».

1-A) Indique, concretamente, três regras do silogismo formalmente válido que foram infringidas na construção deste silogismo.

1-B) Indique o modo e a figura deste silogismo.

II

“Um só caminho nos fica – o Ser é! Existem milhares de sinais de sinais demonstrativos de que o Ser é incriado…Ser e Pensar é um e o mesmo”(Parménides de Eleia).

 

2-A) Explique o que é o Ser segundo Parménides, com base no texto e em outras fontes, e relacione Ser com realismo, idealismo e fenomenologia.

 

3)Relacione, justificando:

A) Ser fora de si e ser para si, em Hegel, e lei do salto qualitativo.

B) Espírito de um Povo, Espírito do Mundo e Holismo, em Hegel

C) Percepção Empírica, Conceito, Juízo e Intuição Inteligível.

D) Falácia depois de por causa de e indução amplificante.

E) Idealismo, Realismo Crítico e os quatro passos gnoseológicos do raciocínio de Descartes.

 

CORREÇÃO DO TESTE DE AVALIAÇÃO COTADO PARA 20 VALORES

 

I

A) Três regras infringidas da validade do silogismo acima foram: de duas permissas afirmativas não se pode extrair uma conclusão negativa; nenhum termo pode ter maior extensão na conclusão do que nas premissas (alguns racistas na permissa menor/ os racistas  na conclusão); o termo médio (norte-americanos ) tem de ser tomado pelo menos uma vez universalmente e está tomado apenas no sentido de «alguns» e não de «todos». (VALE TRÊS VALORES).

 

1-B) O modo do silogismo é IIE, a figura é PS (predicado e predicado refere-se à  posição do termo médio nas premissas) ou 3ª figura.(VALE UM VALOR).

 

2)  A ontologia de Parménides de Eleia diz que a única realidade é o ser, um ente uno, imóvel, imutável, esférico, invisível, imperceptível, eterno, que não foi nem será porque é eternamente o mesmo e diz que «ser e pensar são um e o mesmo». A mudança das cores, o nascimento, o crescimento, o decrescimento e a morte, a sucessão das estações do ano e todas as mudanças são aparências, ainda que o ser possa estar subjacente a elas, escondido atrás delasA interpretação realista desta  frase «ser e pensar são um e o mesmo». é: o pensamento é idêntico ao ser, é espelho do ser material ( e aqui podemos «ler» o ser como realismo, doutrina que sustenta que o mundo de matéria é real em si mesmo). A interpretação idealista da mesma frase é: o ser é pensamento, nada existe fora da ideia absoluta que é o ser, e o mundo de matéria, com a mudança das estações do ano, o nascimento e a morte não passa de ilusão (idealismo é a teoria que afirma que o mundo material é irreal é como um sonho dentro da minha ou das nossas imensas mentes). A fenomenologia é a doutrina céptica no seu fundo que afirma que a mente humana e a matéria são correlatas não se sabendo se o mundo material existe em si mesmo ou não. (VALE QUATRO VALORES)

 

 3-A) Para Parménides, o ser é invisível, imóvel, imutável, exclui as aparências empíricas. O ser é significa a sua eternidade e imutabilidade: não principiou, não acabará. Para Hegel, o ser é invisível e visível consoante as épocas, é mutável, inclui as aparências empíricas (o verde das árvores, o calor do sol, etc) e   desdobra-se em três fases, segundo a lei da tríade: fase lógica, Deus sozinho antes de criar o universo o espaço e o tempo (é a tese ou afirmação, o primeiro momento da tríade); fase da natureza ou do ser fora de si, na qual Deus se aliena ou separa de si mesmo ao transformar-se em espaço, tempo, astros, pedras, montanhas, rios, plantas e deixa de pensar (é a antítese ou negação, o segundo momento da tríade); fase da humanidade ou do espírito ou do ser para si, em que a ideia absoluta/Deus emerge com a aparição da espécie humana, que é Deus encarnado evoluindo em direção a si mesmo, por sucessivas formas de estado, desde o despótico mundo oriental (um só homem livre, o faraó ou o imperador oriental) passando pelo mundo greco-romano (alguns homens são livres, os escravos e os servos não) até ao mundo cristão da Reforma protestante onde todos os homens são livres (é a síntese ou negação da negação). A lei do salto qualitativo postula que a acumulação lenta e gradual em quantidade de um dado aspecto de um fenómeno leva a um salto brusco ou nítido de qualidade nesse fenómeno. Podemos dizer que na fase do ser fora de si foram surgindo, uma a uma, as espécies vivas de plantas e animais (acumulação em quantidade, lenta) até que com o aparecimento do homem se deu o salto de qualidade. (VALE TRÊS VALORES).

 

3-B) Espírito de um povo é o conjunto da sua filosofia, dos seus mitos, da sua organização política e social, do seu direito, arte, religião, literatura, folclore. O espírito do povo português inclui catolicismo com devoção a Fátima, chico-espertismo individualista (fuga aos impostos, etc.) ao passo que o espírito do povo sueco inclui protestantismo, amor à natureza florestal, trabalho em equipa descentralizada.  O espírito do mundo é a soma dos espíritos de todos os povos do mundo e isso é holismo, visão de conjunto que lê as partes a partir do todo (VALE DOIS VALORES).

 

3-C) Percepção empírica é um conjunto organizado de sensações que, em regra, serve de base ao conceito, isto é, ideia de uma coisa ou classe de coisas (ver muitos cavalos leva à formação do conceito de cavalos). Juízo é uma afirmação ou negação, ligando entre si por um verbo dois ou mais conceitos. Intuição inteligível é a captação instantânea de uma realidade ou irrealidade invisível, metafísica ou cisfísica (VALE DOIS VALORES).

 

3-D) A falácia depois de por causa de é o erro de raciocínio  que atribui uma relação necessária de causa efeito a dois fenómenos vizinhos por acaso (exemplo: «Há 10 dias vi um gato preto e caí da bicicleta, há 5 dias vi outro gato preto e perdi a carteira, ontem vi um gato preto e o meu telemóvel avariou, logo ver gatos pretos dá-me azar). A indução amplificante é a generalização de alguns exemplos empíricos similares segundo uma lei infalível (Ex: Depois  de 1000 experiências, induzimos que os corpos largados no ar caem para a Terra). Ambas generalizam. (VALE DOIS VALORES).

 

3-E) Os quatro passos do raciocínio de Descartes são pautados pelo racionalismo, doutrina que afirma que a verdade procede do raciocínio, das ideias da razão e não dos sentidos, racionalismo esse que é uma forma de radicalidade filosófica. O idealismo, doutrina que postula que a matéria é irreal, não passa de conjunto de sensações ou ideias, está presente no segundo e no terceiro passos, e o realismo crítico, que afirma que vemos de forma distorcida o mundo real exterior, está no quarto passo:

 

Dúvida hiperbólica ou Cepticismo Absoluto( «Uma vez que quando sonho tudo me parece real, como se estivesse acordado, e afinal os sentidos me enganam, duvido da existência do mundo, das verdades da ciência, de Deus e até de mim mesmo »).

 

Idealismo solipsista («No meio deste oceano de dúvidas, atinjo uma certeza fundamental: «Penso, logo existo» como mente, ainda que o meu corpo e todo o resto do mundo sejam falsos»).

 

3º Idealismo não solipsista («Se penso tem de haver alguém mais perfeito que eu que me deu a perfeição do pensar, logo Deus existe).

 

Realismo crítico («Se Deus existe, não consentirá que eu me engane em tudo o que vejo, sinto e ouço, logo o mundo de matéria, feito só de qualidades primárias, objetivas, isto é, de figuras, tamanhos, números, movimentos, existe fora de mim»). Realismo crítico é a teoria gnosiológica segundo a qual há um mundo de matéria exterior ao espírito humano e este não capta esse mundo como é. Descartes, realista crítico, sustentava que as qualidades secundárias, subjectivas, isto é, as cores, os cheiros, os sons, sabores, o quente e o frio só existem no interior da mente, do organismo do sujeito, pois resultam de movimentos vibratórios exteriores e que o mundo exterior é apenas composto de formas, movimentos e tamanhos e uma matéria indeterminada. (VALE TRÊS VALORES).

 

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Quarta-feira, 21 de Setembro de 2016
Sobre a síntese

 

Para uma reflexão mais profunda, síntese é um conceito polissémico:

 

1) É um termo intermédio, em Hegel, situado posteriormente aos dois contrários que a geram. O tempo colocaria a síntese fora dos contrários que a geram, ou seja, ela dar-se-ia num outro tempo. Assim, a humanidade (Deus para si) surgiu após as duas primeiras fases da Ideia (Deus em si e por si, sem matéria; Deus fora de si, transformado em matéria bruta, plantas e animais).

 

2) É um termo intermédio, gerado a partir dos dois contrários e coexistente com eles. Funcionam os três em simultâneo. Aqui a noção de coexistência prevalece sobre a de incompatibilidade. Exemplo: o sindicato surge como síntese entre o patronato e os operários em greve selvagem.

 

3)  É um termo exterior aos dois contrários e nada conserva deles. 

 

Na interpretação marxista, o bonapartismo ou regime imperial de Napoleão Bonaparte é uma síntese, um momento posterior à contrariedade entre a revolução popular pequeno burguesa e a contra-revolução absolutista monárquica.

 

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Sábado, 28 de Maio de 2016
Teste de Filosofia do 10º ano, turma A (Maio de 2016)

 

Eis um teste de filosofia centrado no tema religião, opção escolhida pelos alunos da turma.

 

 

Agrupamento de Escolas nº1 de Beja

Escola Secundária Diogo de Gouveia, Beja

TESTE DE FILOSOFIA, 10º ANO TURMA A

24 de Maio de 2016. Professor: Francisco Queiroz.

 I

  «O rito é a reactualização do mito que se refere à transcendência. O realismo crítico não se liga necessariamente ao espiritualismo ou ao materialismo”.

 

1) Explique estes pensamentos.

 

2)Faça corresponder a cada um dos cinco elementos da filosofia chinesa do Feng Shui e do taoísmo, o respectivo ponto cardeal, animal, campo de vida (profissão, casamento, etc), cor, sentido humano (audição, visão, etc.), estação do ano, hora do dia, percentagem de yang (jovem, velho) e de yin, e aplique a lei da contradição principal a esse conjunto

 

.3)Relacione, justificando:

A) Dharmas, eu e impermanência, no budismo.
B) Ser fora de si, alienação e panteísmo, na doutrina de Hegel sobre a ideia absoluta.

 

CORREÇÃO DO TESTE COTADO PARA 20 VALORES

 

1)  O rito é um conjunto de gestos e cerimónias (exemplo: a missa dos católicos, o passar as contas de um rosário entre as mãos dos budistas) que visam reacender os mitos sagrados do princípio do mundo, isto é, as cenas lendárias dos deuses, anjos, demónios ou antepassados de uma tribo ou povo. O partir do pão (rito) na missa católica evoca ou põe na ordem do dia a morte de Cristo na cruz (mito). Transcendência é estar fora de ou além de e neste contexto mito da transcendência significa o mito que fala de seres sobrenaturais, em regra deuses que criam o mundo ou nele intervêm.  (VALE TRÊS VALORES). O realismo crítico é a teoria que afirma que há um mundo material anterior às mentes humanas e independente destas que o captam de maneira distorcida. O realismo crítico em Descartes consiste em postular o seguinte: há um mundo de matéria exterior às mentes humanas, feito só de qualidades primárias, objetivas, isto é, forma, tamanho, número, movimento. As cores, os cheiros, os sons, sabores, o quente e o frio só existem no interior da minha mente, do organismo do sujeito, pois resultam de movimentos vibratórios de partículas exteriores já que o mundo exterior é apenas composto de formas, movimentos e tamanhos. Ora esta teoria é compatível com o materialismo, doutrina que afirma que a matéria é o princípio eterno do mundo, que Deus e deuses não existem nem almas no «Além», e que o espírito é uma forma subtil de matéria. É também compatível com a maioria das formas de espiritualismo, doutrina que afirma que o espírito (Deus, deuses, espíritos humanos) é eterno ou criador do universo de matéria e que esta deriva do espírito. (VALE QUATRO VALORES)

 

2) Os cinco elementos da filosofia chinesa do taoísmo são: madeira, fogo, terra, metal e água. As correspondências de cada um são:

 

MADEIRA. Este. Dragão verde. Crescimento, família. Cor verde. Visão. Nascer do sol. Jovem Yang.

FOGO. Sul. Fénix. Fama. Fala. Verão. meio dia, velho Yang (máximo Yang ou máxima luz e calor).

TERRA. Sudoeste (ou Centro, segundo algumas interpretações). Serpente. Cor: amarelo. Fim do verão. Casamento, amores.  Sabor. Meio da tarde. Igual proporção de Yang e Yin.

METAL. Oeste. Tigre branco. A criatividade, os filhos. O olfato. Outono. Cor branca. Pôr do sol. Jovem yin (algum frio e humidade).

ÁGUA. Norte. Tartaruga negra. A profissão, os negócios. Audição. Inverno. Meia noite, velho Yi ( máximo Yin ou máxima escuridão e frio).

A lei da contradição principal diz que um sistema de múltiplas contradições pode ser reduzido a uma só, organizando-as em dois blocos, podendo haver uma ou outra contradição na zona neutra. Assim podemos, por exemplo, colocar de um lado o bloco Yang (Madeira/primavera ; Fogo/Verão) e do outro lado o bloco Yin (Metal/ Outono, Água/Inverno), ficando na zona neutra a Terra/Fim do Verão na qual Yang e Yin se equilibram. Há outras maneiras de estruturar a contradição principal. (VALE SEIS VALORES)

 

3) A)  Dharma em sentido geral significa Lei da Natureza. Dharmas em sentido particular são as qualidades físicas, psíquicas e intelectuais que, por assim dizer, flutuam no cosmos como átomos, sem sujeito, e se juntam para formar o eu mutável, a personalidade de uma pessoa. Assim a cor dos olhos, a forma do rosto e do corpo, as sensações de prazer e dor, os impulsos sentimentais, a consciência são dharmas que formam o eu em mudança ou impermanência de cada um: quem fica cego perdeu o dharma da visão, quem fica em coma perdeu o dharma da consciência. O eu é impermanente, na verdade nem existe, porque os dharmas que o formam mudam a cada instante, embora haja um eu superior, o Atmã, destituído de dharmas e imortal. (VALE QUATRO VALORES)

 

3-B) O ser fora de si é a segunda fase da ideia absoluta: Deus, que era ser em si, pensamento puro,  alienou-se em matéria física, isto é, separou-se de si mesmo enquanto espírito pensante, transformou-se em espaço, tempo, em astros, montanhas, rios, plantas e animais. Isto é panteísmo, doutrina que afirma que a natureza biofísica é divina: o sol e a lua são olhos de Deus, os mares são a linfa de Deus, erc. (VALE TRÊS VALORES).

 

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Domingo, 1 de Maio de 2016
Imprecisões de Hannah Arendt

 

Hannah Arendt (nascida Johanna Arendt; Linden, Alemanha, 14 de outubro de 1906 – Nova Iorque, Estados Unidos, 4 de dezembro de 1975) filósofa política alemã de origem judaica, discípula de Heidegger  de cujo totalitarismo político se demarcou, possui diversos equívocos no seu pensamento, sem embargo da sua vasta cultura e de ser uma pensadora notável.

 

VONTADE COMO LIVRE-ARBÍTRIO OPÕE-SE A VONTADE COMO INÍCIO?

 

Escreveu a filósofa judia:

«Na minha discussão da Vontade mencionei repetidamente duas maneiras completamente diferentes de compreender essa faculdade: como uma faculdade de escolha entre objectos ou metas, o liberum arbitrium, que actua como árbitro entre fins dados e delibera livremente sobre os meios para os alcançar; e, por outro lado, como a nossa «faculdade de iniciar espontaneamente uma série no tempo» ou o «initium ut homo creatus est» de Agostinho, a capacidade do homem para iniciar porque ele próprio é um início».

(Hannah Arendt, A vida do Espírito, volume II-Querer, Instituto Piaget, páginas 174-175; o destaque a bold é posto por nós)

 

Há alguma falta de clareza nesta dicotomia estabelecida por Hannah Arendt: o livre-arbítrio inclui a «faculdade de iniciar espontaneamente algo no tempo.» Qualquer acto de livre-arbítrio é um início: se escolho, após demorada reflexão, frequentar um templo budista ou militar num partido político estou a usar a vontade como iniciadora de um processo. Portanto, o dilema que Arendt apresenta acima é um falso dilema: vontade com livre-arbítrio inclui vontade como força iniciadora, não se opõem entre si. O verdadeiro dilema, que Hannah Arendt não põe em relevo, ao menos nesta passagem, é o que opõe a vontade consciente, como livre-arbítrio, à vontade insconsciente, cega e transpessoal em Schopenhauer, que nos leva a criar o mundo fenoménico das árvores, rios e céus, e à vontade inconsciente como pulsão libidinal ou pulsão de Eros, em Freud, que nos leva a sexualizar tudo, isto é, a olhar as pessoas como objectos eróticos, em diferentes graus. 

 

A OMISSÃO DE SCHOPENHAUER, ARAUTO DA VONTADE  TRANSPESSOAL

 

Hannah Arendt discorre  sobre a Vontade, na história da filosofia, no seu livro «Vida do Espírito, II, Querer. E considera Heidegger superior a Schelling no aspecto em que este último teorizou a Vontade personificada ao passo que Heidegger sustentaria a Vontade não personificada. Escreve:

 

«Foi nesta região de pura especulação que apareceu a Vontade durante o curto período do Idealismo Alemão. "Na instância final e muito alta", declarou Schelling," não há outro ser além da Vontade. A Vontade é o Ser primordial, e todos os predicados se aplicam unicamente a ela - falta de fundamentação, eternidade, independência do tempo, auto-afirmação! Toda a filosofia se esforça apenas por encontrar esta mais alta expressão". E citando esta passagem no seu What is called Thinking?, Heidegger acrescenta imediatamente: «Então, os predicados que o pensamento metafísico atribuiu ao Ser, Schelling encontra-os na sua forma final, mais alta... mais perfeita no querer. No entanto, a Vontade neste querer não significa aqui uma capacidade da alma humana; a palavra "querer" designa aqui o Ser dos entes como um todo" (acrescentarei os itálicos). Não há dúvida que Heidegger tem razão; a Vontade de Schelling é uma entidade metafísica mas, ao contrário das mais comuns e mais antigas falácias metafísicas, é personificada. Num contexto diferente, e com maior precisão, o próprio Heidegger resume o signifivado deste Conceito personificado: a falsa "opinião (que facilmente) resulta daí é que a vontade humana é a origem da vontade-de-querer , enquanto pelo contrário, o homem está a ser querido pela Vontade-de-querer sem sequer experimentar a essência de um tal querer".

(Hannah Arendt, A vida do Espírito, volume II-Querer, Instituto Piaget, páginas 172-173; o destaque a bold é posto por nós)

 

Mas Arthur Schopenhauer teorizou a Vontade transpessoal como a criadora do mundo que é mera representação (idealismo gnoseológico, imaterialismo) e Hannah Arendt omite-o nesse campo. Porquê?

 

 

É INTELIGENTE TROÇAR DA ASTROLOGIA HISTÓRICA DETERMINISTA?

Escreveu Arendt:

«Os homens, para sempre tentados a levantar o véu do futuro - com a ajuda de computadores ou horóscopos ou os intestinos dos animais sacrificiais - têm um cadastro pior para mostrar nessas «ciências» do que em quase todos os outros empreendimentos científicos».

(Hannah Arendt, A vida do Espírito, volume II-Querer, Instituto Piaget, página 175; o destaque a bold é posto por nós)

 

Neste texto, Arendt equipara o estudo matemático-astronómico dos factos históricos (astrologia histórica, diferente de psico-astrologia) à leitura dos intestinos de animais sacrificados... É uma pura falácia de Hannah. E manifesta a ignorância desta sobre o Ser: porque este é os 360 graus do Zodíaco, o movimento dos planetas e a corporalidade terrestre que daí se desprende.

 

Uma qualidade comum a quase todos os filósofos e professores de filosofia é não saber que os planetas comandam inteiramente o destino de cada homem, planta, animal e pedaço de matéria inerte e que a astrologia histórico-social, enquanto colectora e sistematizadora de factos empíricos, é uma ciência, mais exacta que a história, porque a esta acrescenta a astronomia, mais exacta que a psicologia, a sociologia, a economia, a antropologia.

Se Hannan Arendt possuísse a inteligência holística, que lhe faltou como faltou a Descartes, a Kant, a Leibniz, a Husserl, a Merleau-Ponty, a Heidegger, a Sartre, a Nozick, a Zizeck e a quase todos os outros doutorados em filosofia, abriria um livro de Efemérides planetárias e folheando-o, interrogar-se-ia sobre o facto de Hitler ter subido ao poder em 30 de Janeiro de 1933, com Júpiter em 22º do signo de Virgem e se ter suicidado em 30 de Abril de 1945, com Júpiter em 17º de Virgem (só uma vez durante 10 ou 11 meses, em cada 12 anos, Júpiter desliza no signo de Virgem que vai de 150º a 180º da eclíptica; é significativo que Júpiter em Virgem tenha elevado Hitler ao poder em 1933 e o tenha feito descer do poder em 1945 ).

 

 

Troçar do determinismo astral nos actos humanos individuais e político-sociais é próprio de «burros» - e as universidades, tal como as bibliotecas de filosofia e ciências, estão cheias desse tipo de «burros» licenciados, mestres e doutorados. Aliás, a história da filosofia é predominantemente a história dos «burros» académicos que sempre negaram a predestinação astral, é uma mistura de obscuridade mental e luz.  Quanta vaidade a dos filósofos, ignorantes que presumem ser a vanguarda do pensamento humano, o juíz decisivo, quando, como Heideger ou Hannah Arendt, não conhecem sequer as posições planetárias ao longo da história e os factos sociais a que deram origem!  Uma faculdade de Filosofia sem cadeiras de Astrologia Histórica não é digna do nome de universidade (universitas, saber universal).

 

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Quarta-feira, 20 de Abril de 2016
Hegel: a oposição entre a obra e a consciência

 

Na sua obra «Fenomenologia do espírito», Hegel estabelece dois polos, a realidade ou ser e a consciência, e uma transição ou mediação entre ambos que é o operar (obrar), a negatividade do ser imediato :

 

«Tal é o conceito que forma de si a consciência, que está certa de si mesma como absoluta interpenetração da individualidade e do ser; vejamos se este conceito se confirma pela experiência e a sua relidade [ Realität] coincide com ele. A obra é a realidade que a consciência dá; é aquilo em que o indivíduo é para a consciência o que é em si, de tal modo que a consciência para a qual o indivíduo devém na obra não é a consciência particular, mas a consciência universal, a consciência, na obra, transcende em geral o elemento da universalidade, o espaço indeterminado do ser. A consciência a que se remonta a partir da sua obra é de facto, a consciência universal  - porque devém em negatividade absoluta ou o obrar em oposição - relativamente à sua obra que é o determinado; a consciência vai, pois, além de si mesma, enquanto obra e é por si mesma o espaço indeterminado que não se encontra cheio pela sua obra» (Hegel,Fenomenología del espíritu, pag 237, Fondo de Cultura Económica, México; o destaque a negrito é posto por mim).

 

O termo consiência não se resume ao indivíduo senciente e pensante. A consciência deste é a particular. Ora Hegel refere-se à consciência universal que está na origem tanto do objecto material (o ser) como da consciência individual. A sua ontologia é espiritualista - o espírito divino é eterno e gerador da matéria, seu ser-outro - e realista ou ideal-realista.  Hegel afasta-se do idealismo material de Kant: em Kant o fenómeno (árvore, casa, animal) nunca chega a ser um fora de si em relação ao espírito humano, está sempre dentro deste (idealismo material), embora na sua zona quase periférica (o espaço ou sentido externo), ao passo que em Hegel a matéria é um fora de si em relação à Ideia (realismo).

 

Não parece clara a afirmação de que «a consciência, na obra, transcende em geral o elemento da universalidade, o espaço indeterminado do ser» a menos que se interprete universalidade como generalidade abstracta e se pretenda significar que a consciência ao materializar a partir de si uma obra - exemplo: construir uma casa com tijolos e cimento- está a ultrapassar a generalidade abstracta, o mero projecto por concretizar.

 

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Sexta-feira, 13 de Junho de 2014
O desvio de Hegel da tradição da visualização grega

 

Hegel dividiu a sua ontologia e teodiceia em três vertentes diacrónicas: o ser, a essência, o conceito, equivalendo a tese, antítese e síntese.

 

«Pelo facto  de que o conceito (a noção) envolve, por este lado, o ser e a essência que aparecem como suas condições precedentes e que se afirmam como sua razão de ser absoluta (lado ao qual correspondem em outro ponto de vista a sensibilidade, a intuição e a representação) fica o outro lado que traz este terceiro livro de Lógica e cujo objecto consiste em expor de que modo o conceito constrói em si mesmo extraíndo de si mesmo esta realidade absorvida nele.» (Georg W.F. Hegel, Lógica II y III, Folio, Barcelona, pág 103).

 

De facto, na teoria geral da ideia absoluta parece haver um desvio de Hegel em relação à tradição grega platónica e mesmo aristotélica: do ser, que é o puro existir abstracto (Deus antes de criar o mundo,o espaço e o tempo)  passa-se à essência, que é um existir material concreto (Deus transformado em planetas, estrelas, rios, árvores, animais não humanos)  e desta última, passa-se ao conceito que é uma forma esvaziada de matéria (Deus incarnado em humanidade pensante), um regresso (enriquecido) ao existir abstracto do ser. Em Parménides, nunca se sai do ser, que além de consubstanciar o existir, é uma essência-forma: uma esfera homogénea, una, imutável, invisível, impalpável. Em Aristóteles, o ser (einai) é um atributo, o existir ou o pertencer a algo, que está acima das essências ou formas específicas: o Ente, no sentido de essência divina, é a forma pura sem matéria, o acto sem a potência.

 

Se, em Hegel, Deus ou ideia absoluta pensa o mundo que irá criar não pode ser, meramente, o ser. Tem de ser sujeito, essência, pois alberga em si a totalidade das formas em que se virá a converter nas fases seguintes.

 

Hegel distingue a essência do ser determinado e considera-a o fundamento deste, o que coincide, aparentemente,  com o pensamento aristotélico:

 

«A essência deve manifestar-se, uma vez porque o ser determinado se dissolve em si mesmo e retorna ao seu fudamento -o fenómeno negativo; e outra vez, porquanto a essência como fundamento é simples imediatidade e, portanto, ser em geral - Por mor da identidade do fundamento e da existência, nada há no fenómeno que não esteja na essência e, inversamente, nada há na essência que não esteja no fenómeno» (Georg Hegel, Propedêutica Filosófica, Edições 70, pág. 228; o destaque a negrito é posto por mim). 

 

O problema da formulação «a essência como fundamento é simples imediatidade e, portanto, ser em geral» é o seu carácter paradoxal. Aristóteles nunca diria isto: distinguiria o tó on (o ser-existência) do tó tí (a forma acidental ou essencial). Hegel reduz a uma amálgama a distinção entre ser imediato e essência. O ser em geral imediato não tem forma. Ora a essência, o eidos aristotélico, é uma forma de uma dada espécie. Não é possível a dissolução da essência no inessencial ser em geral - são contrários e os contrários não se dissolvem um no outro, permanecem numa irreconciliável oposição, embora possam trocar de posição (dominante e dominado). A essência é um sujeito geral ou individual e o ser um predicado (exemplo: a rosa é, existe). Não é possível dissolver o sujeito no predicado, a menos que se confunda essência com matéria. E esta confusão subsiste em Hegel.

 

A MATÉRIA COMO CATEGORIA DA ESSÊNCIA EM HEGEL, AO CONTRÁRIO DE ARISTÓTELES

 

Note-se a confusão terminológica de Hegel:

                                                                                   

(11-43)

«b-  As categorias da essência são a matéria, a forma e o fundamento.»

 

(12-44)

«A matéria é a essência enquanto igualdade consigo mesmo.»

 

(Georg Hegel, Propedêutica Filosófica, Edições 70, pág. 110). 

 

Hegel está longe de Aristóteles ao incluir a matéria na essência. Aristóteles usou o termo substância (ousía) como síntese entre a forma (eidos) e a matéria (hylé) mas Hegel introduz a matéria na essência. O que é o fundamento, senão a forma original, o protótipo? Nem se percebe a frase «A matéria é a essência enquanto igualdade consigo mesmo» - e a forma não é uma igualdade consigo mesma? Decerto, Hegel define substância mas de forma algo retórica sem enfatizar a matéria nela contida:

 

«O efectivamente real é substância. É essência que contém em si as determinações do seu ser determinado como simples atributos e leis e põe os mesmos como um jogo existente determinantemente ou como os seus acidentes, cuja ab-rogação não constitui um desvanecimento da substância, mas o seu retornar a si mesma» (Georg Hegel, Propedêutica Filosófica, pág 29).

 

Aquilo que é artificial e, em certa medida, chocante, na divisão hegeliana do movimeno da ideia em ser-essência-conceito  é o facto de a matéria física conferir a essência, constituir a essência. É uma concessão ao materialismo, uma subversão do conceito grego da preexistência da forma. Tanto em Platão como em Aristóteles a forma é ontologicamente anterior à matéria na formação do ente. Em Hegel, aparentemente, não é assim: ele antepõe o ser à essência, a qualidade abstracta do existir à essência, à substância. O seu pensamento assemelha-se ao taoísmo: do não-ser provêm todas as coisas.

 

 

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