Quarta-feira, 8 de Junho de 2016
Há obras de arte sem assunto, como sustentou Goodman?

Nelson Goodman, filósofo norte-americano construtivista (1906-1998), escreveu:

 

«Obviamente, o assunto é o que é dito, o estilo é o modo como é dito. Um pouco menos obviamente, essa fórmula está cheia de falhas. A arquitectura, a pintura não objectiva e a maior parte da música não têm assunto. O estilo delas não pode ser uma questão do modo como dizem algo, porque elas não dizem literalmente nada; fazem outras coisas, significam de outros modos. » (Nelson Goodman, Modos de fazer mundos,pag 63, Editorial Asa, 1995).

 

O problema que aqui se coloca é o da ruptura com a concepção hegeliana e romântica da arte como um composto de forma e conteúdoParte da  arte contemporânea, aparentemente sem referente no mundo exterior, não tem conteúdo ou assunto, segundo Goodman. Seria, pois, apenas forma. Isto não se aplica, em regra, à literatura, porque esta se compõe de frases, significantes com um significado, mas mesmo aí há questões problemáticas:

 

«A forma varia enquanto o conteúdo permanece constante - mas existem dificuldades mesmo com esta máxima. Graham Hough escreve: ".. quanto mais reflectimos sobre isso, mais problemático se torna falar sobre diferentes modos de dizer; cada modo de dizer não é, de facto, o dizer de uma coisa diferente?» (Nelson Goodman, Modos de fazer mundos, pag 64, Editorial Asa, 1995).

 

Se entendermos por assunto o que Hegel designa por conteúdo da obra de arte - as ideias, os sentimentos que esta desperta no espectador - então toda a obra de arte tem assunto. Deveremos distinguir dois tipos de assunto: aquele que é objectivo, dizível, e aquele que é absolutamente subjectivo, inexprimível, inefável. Este último predomina na arte contemporânea que o público vulgar classifica de "sem sentido", "incompreensível", "pseudo-arte porque não se entende e não mostra o mundo como é".

 Corrigindo Goodman: há obras de arte sem assunto racional, perceptível e objectivo, são as do abstracionismo, dadaísmo e outras que possuem ou suscitam assunto subjectivo, indizível.

 

 

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Segunda-feira, 18 de Janeiro de 2016
Ontologia dos Peratas: O Pai, o Filho e a Matéria

 

De acordo com o bispo Hipólito de Roma, autor de «Refutação de todas as heresias», publicada cerca do ano 222, a corrente gnóstica dos Peratas (péros, em grego, significa limite) sustentava a divisão do universo em três partes: o Pai, o Filho e a Matéria. Escreveu Hipólito:

 

«Segundo eles, o universo consiste em Pai, Filho e matéria. No espaço que medeia entre a  matéria e o Pai, tem a sua sede o Filho, o Logos, a serpente em perpétuo movimento junto ao Pai imóvel, a qual move a matéria. O Filho ora se volta para o Pai e recebe as potências na sua própria pessoa, ora assume as potências e se volta para a matéria e esta, por si mesma carente de qualidade e de figura, recebe do Filho a configuração das formas, formas com as que o Filho tinha sido previamente configurado pelo Pai.»

 (Los gnósticos, volume II, Hipólito de Roma, Refutación de todas las herejías, página 80, Biblioteca Clásica Gredos, Madrid).

 

É interessante constatar a ideia do Cristo Serpente ou Cristão Dragão Celeste que contraria a imagem que o cristianismo oficial fornece do Salvador oposto ao demónio simbolizado pela Serpente. E apesar de este texto sugerir o contrário, este Cristo não actua como o demiurgo em Platão o deus operário que não cria a matéria, mas imprime nela, segundo Platão, as formas arquetípicas. Há uma quarta entidade, situada entre Cristo e a matéria, que é o demiurgo, o arconte, que toma as formas perfeitas existentes no Filho, a serpente celeste e comete o erro de imprimir, através de um fluxo, essas formas na matéria em devir permanente. Escreve Hipólito:

 

«Assim, pois - prosseguem - quando o Senhor diz «Vosso Pai que está nos céus» refere.se àquele de quem o filho assumiu as formas para as introduzir neste mundo. Quando diz «vosso pai, desde o princípio, é homicida» refere-se ao arconte e demiurgo da matéria, o qual recolheu as formas fornecidas pelo Filho e engendrou as coisas deste mundo, desde o princípio é homicida. A sua obra opera a corrupção e a morte.»

«Assim pois - prossegue - ninguém pode salvar-se nem ascender a não ser por meio do Filho, que é a serpente.»

 

(Los gnósticos, volume II, Hipólito de Roma, Refutación de todas las herejías, páginas 81-82, Biblioteca Clásica Gredos, Madrid; o destaque a bold é posto por nós).

 

Sendo a matéria corruptível e fonte de corrupção, os gnósticos salvam-se, com a sua racionalidade, da enorme falácia teológica das igrejas católica, protestantes e judaica que é considerar Deus o autor de todas as coisas visíveis e invisíveis, isto é, não só dos céus, dos mares e das paisagens terrestres belas, da beleza e da saúde juvenil mas também dos vulcões, dos furacões e dos tsunamis que matam pessoas, da velhice decrépita, das criaturas disformes, dos cancros e outras doenças.

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Sexta-feira, 23 de Outubro de 2015
Equívocos de Aristóteles sobre o Uno (universal) e a Substância (singular)

 

.Para Aristóteles os universais são: o uno (tó hen), o que é (tó ón) e os géneros (por exemplo: animal, ser vivo, planta). A essência (eidos) não é um universal mas algo comum (koinos) a múltiplas coisas. Escreveu, de forma pouco clara e mesmo incoerente:

 

«E posto que “uno se diz do mesmo modo que “algo que é” e a substância do que é uno é una e as coisas cuja substância é numericamente una são algo numericamente uno, é evidente que não podem ser substância das coisas nem “uno nem algo que é e tão pouco pode sê-lo aquilo em que consiste ser elemento ou ser-princípio- (…) Com efeito a substância (ousía)não se dá em nenhuma outra coisa que em si mesma, e naquilo que a tem e de que é substância. Ademais o que é uno não pode estar ao mesmo tempo em muitos sítios, ao passo que o comum se dá simultaneamente em muitos sítios.»

 

«.Assim, pois, resulta evidente que nenhum universal existe separado fora das coisas singulares. Sem embargo, os que afirmam que as Formas existem deste modo, em certo sentido têm razão ao separá-las, se é que são substâncias, mas em certo sentido não têm razão, já que denominam «Forma» ao uno que abarca uma multiplicidade.(...) .Assim, pois, é claro que nenhuma das coisas que se dizem universalmente é substância e que nenhuma substância se compõe de substâncias»(Aristóteles, Metafísica, Livro VII, capítulo XVI, 1040b, 15-30; 1041b, 3).

 

Aristóteles enferma de incoerência: por um lado, afirma que os universais (uno, algo que é) não existem na substância ou coisa singular (exemplo: esta casa, este cão, esta planície); por outro lado afirma que nenhum universal existe separado fora das coisas singulares, ou seja, o “uno” e “o que é” não existem fora de cada casa, de cada cão, de cada homem, etc.

 

Dizer que o uno não pode estar simultaneamente em muitos sítios ao passo que a essência, a forma comum a um dado grupo de objectos (por exemplo: a essência árvore) está em muitos sítios ao mesmo tempo é interpretar uno como mundo de arquétipos – estes são irrepetíveis, únicos, àparte.

 

Mas a ideia dialética de uno como unidade universal de todas as coisas, físicas ou não físicas, está ausente em Aristóteles, que confunde uno com princípio-arquétipo.

 

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Segunda-feira, 10 de Outubro de 2011
Sobre a analogia do uno e do ente: os dois sentidos de uno e os dois sentidos de ente

Aristóteles postulou, na «Metafísica", a analogia do uno e do ente. Analogia significa uma semelhança entre formas ou funções de dois ou mais entes, substantivos ou não, bastante diferentes entre si. Por exemplo, o homem é análogo a uma árvore: os pés são análogos às raízes, as pernas ao tronco de madeira, os braços aos ramos, a cabeça à copa de folhas. O que é ou ente assemelha-se ao uno, são análogos: o uno indeterminado não é espécie dentro do género ser, ainda que este abarque uma vastíssima extensão do uno determinado. Se ser é entendido como puro existir indeterminado coincide absolutamente com o uno indeterminado, isto é, enquanto matéria, isto é, substrato indeterminado da forma, e engloba o uno determinado (limitado por uma forma) e o múltiplo (o uno indeterminado retalhado por várias formas).

 

O uno determinado e o ente determinado são, em certo sentido, no estrato das formas, dois círculos que se interpenetram. No substrato da matéria, o uno e o ser (puro) coincidem em absoluto e são infinitos, falando em termos espaciais. Há uma zona do ente determinado que é una, e outra zona que não é una mas múltipla, do ponto de vista da forma- ainda que a dialética sublinhe que a multiplicidade está incluída numa unidade superior, que é a matéria do existir.

 

Assim temos dois sentidos da palavra uno: o uno da forma que é vencido, dissolvido, pelo aparecimento da multiplicidade; o uno da matéria abstracta, do conteúdo indeterminado do todo, e este uno é verdadeiramente invencível, imóvel, ubíquo, infinito. O uno da matéria abstracta - que não é matéria densa, nem energia, etc, mas sim substrato geral do mundo físico, do pensamento, etc - coincide completamente com o ser, o ente. É aqui que se centra a noologia de Parménides: «o ser é, uno, imóvel..» No entanto, a finitude do ser proclamada por Parménides já indica confusão entre o ser como existir (qualidade universal, insubstancial) e o ser como ente-essência esférica (substância).

 

Num outro sentido, o uno determinado - por exemplo, o uno do universo - abarca o ente A e o  ente não A - por exemplo, a matéria e a não matéria (energia) Sobre o "espaço" infinito do ser indeterminado/ uno indeterminado inscrevem-se  quatro círculos: o do ente determinado (exemplo: a flora do planeta Terra), o do  ente não determinado (exemplo: a não flora do planeta Terra, ou seja, a fauna, a humanidade, os planetas, a galáxia, etc) o do uno determinado (exemplo: uma árvore) e o do múltiplo (exemplo: um milhão de árvores).

 

A ideia de uno obtém-se independentemente da forma. Não é a forma/contorno exterior que faz reconhecer o uno mas a matéria interior a esse contorno, a textura, o conteúdo. É a matéria que dá a ideia do uno e a forma a do múltiplo.

 

 

 

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Terça-feira, 5 de Julho de 2011
Sobre "O Ente e a Essência": ambiguidades em São Tomás e em Santiago de Carvalho

 

Com prefácio do catedrático medievalista Mário Santiago de Carvalho, a Contraponto editou em 1995 "O ente e a essência"  de São Tomás de Aquino. Servi-me dessa edição para leccionar a estudantes alentejanos uma parte do já "desaparecido", na minha escola, programa de Filosofia do 12º ano do ensino secundário em Portugal, que incluía a escolha de três entre vinte obras conceituadas de filosofia. Tanto o texto original de São Tomás como o prefácio de Mário Santiago de Carvalho padecem de imprecisões teóricas, algumas das quais passo a explanar.

 

O ARISTOTELISMO NÃO É ESSENCIALISMO?

 

Em prefácio de uma edição portuguesa de "O Ente e a Essência" de São Tomás de Aquino escreveu Mário Santiago de Carvalho:

 

« Como se insistiu, este é um mérito de Tomás de Aquino, e ele terá consistido em servir-se com rigor da lógica, elucidando-a e pondo-a ao serviço das tarefas da ontologia Este é portanto um aspecto que não quereríamos desvalorizar , pois é, de facto, a linguagem da lógica, o aristotelismo, com o avicenismo e o essencialismo, que galvanizam este texto. » (Mário Santiago de Carvalho in prefácio de "O Ente e a essência" , pag 61, Contraponto, Porto).

 

Que significa para Mário Santiago o termo essencialismo? Tudo leva a crer que significa platonismo, pois separa aristotelismo de essencialismo. Trata-se de um equívoco: o aristotelismo é um essencialismo, uma vez que nele as essências antecedem a existência das coisas materiais, tal como em Platão.

 

A AMBÍGUA DISTINÇÃO ENTRE ESPÉCIE E "NATUREZA HUMANA"

 

São Tomás, enquanto fiel a Aristóteles, distinguiu entre a essência em si mesma (segundo a sua absoluta consideração) e a essência individuada (segundo o ser que possui em cada indivíduo):

 

«Mas a natureza ou essência assim compreendida pode ser considerada de dois modos. Do primeiro modo, segundo a sua noção própria, que é a sua absoluta consideração. (...) Por exemplo, ao homem enquanto homem, corresponde-lhe "racional" e "animal" e outros predicados que entram na definição; mas ser branco ou negro, ou qualquer outra coisa semelhante que não pertença à noção de "humanidade" não corresponde ao homem enquanto homem». (...)

 

«Do segundo modo considera-se (a essência)  segundo o ser que possui neste ou naquele indivíduo. Neste caso, pode atribuir-se-lhe algo por acidente, em razão daquilo em que se encontra. Por exemplo, diz-se que o homem é branco, porque Sócrates é branco, embora isso não pertença ao homem enquanto homem.» (São Tomás de Aquino, "O Ente e a Essência", pag 82-83)

 

«Compete pois à "natureza humana", segundo a sua consideração absoluta, ser atribuída a Sócrates. A noção  de espécie, por sua vez, não lhe compete segundo a sua absoluta consideração, mas deriva de acidentes que a acompanham segundo o ser que possui no intelecto. Por esse motivo, o termo de espécie não é atribuído a Sócrates, como se se dissesse "Sócrates é espécie". Mas isso teria necessariamente de suceder, se a noção de espécie conviesse ao homem segundo o ser que tem em Sócrates, ou segundo a sua absoluta consideração, quer dizer enquanto é homem.» (Tomás de Aquino, ibid, pag 85).

 

Se a "natureza humana", que é o mesmo que a essência homem, como .São Tomás diz no início do livro, convém ao indivíduo Sócrates, porque razão "espécie ´não poderia ser atribuída a homem? É óbvio que, no sentido da extensão, da quantidade dos indivíduos que a integram, Sócrates não é a (toda a) espécie humana, e neste sentido, espécie não lhe convém. Mas do ponto de vista da essência, da forma comum à espécie, esta convém a Sócrates a ponto de se poder dizer: "Sócrates é uma incarnação ou exemplificação da espécie humana" . Aristóteles identificou bem a essência com a espécie (eidos) .O texto de Aquino acima tem falta de clareza.

 

O ABSOLUTO É EXTERIOR AO SINGULAR E AO UNIVERSAL? A ESSÊNCIA É MÚLTIPLA NA ALMA?

 

Referindo-se aos dois modos de considerar a essência teorizados por São Tomás, escreveu Mário Santiago de Carvalho:

 

«A consideração absoluta é evidentemente o ideal da ciência, o índice de que é genuinamente científica a linguagem que fazemos. (...) Sempre que possível, o ontólogo deve privilegiar este plano que não é singular nem universal, mas é absoluto

«No segundo modo, a natureza ou essência já não se considera na sua significação, mas na sua realização. Encontramo-nos a um nível menos abstracto. Neste segundo plano acontece aquilo que se recusava ao primeiro. Se, neste, a essência não podia ser una nem múltipla, já no segundo caso é isso que acontece, ela é múltipla na alma (qualquer conceito é universal) e é una na realidade (os unissingulares)». (Mário Santiago de Carvalho, in introdução de "O Ente e a Essência", pag 36; o negrito é de minha autoria).

 

 

Por que razão o plano da essência na sua consideração absoluta (exemplo: "o homem enquanto homem") «não é singular, nem universal, mas absoluto», segundo Santiagpo de Carvalho?

Há uma confusão antidialéctica de níveis neste pensamento de Mário Santiago. O absoluto engloba o singular, o particular (no sentido de parte, regional, grupo de entes da mesma espécie) e o universal. Absoluto não se opõe a singular e universal mas  sim a relativo: há um singular absoluto e um universal absoluto, um singular relativo e um universal relativo.

 

Mário Santiago de Carvalho afirma que no caso do seu modo da consideração absoluta «a essência não poderia ser una nem múltipla». Mas sustentar isto é violar o princípio do terceiro excluído: ou as coisas são unas ou não unas, isto é, são múltiplas. Há coisas que são unas e múltiplas em simultâneo, segundo a perspectiva. A essência é sempre una. A essência "cavalo" no seu modo de consideração absoluta - o cavalo enquanto cavalo - é única em todas as mentes humanas: um quadrúpede, mamífero hipomorfo, da ordem dos ungulados, com crinas, veloz, uma das três sub-espécies da espécie Equus Ferus.

Como pode Mário Santiago asseverar que a essência não é una? É um paralogismo.

 

E afirma ainda que a essência no modo que tem em cada singular "é múltipla na alma (qualquer conceito é universal) e una na realidade (os unissingulares).» Grande nuvem de confusão aqui paira!  A essência de Sócrates, que é a essência homem individuada em Sócrates, é una na alma (na percepção, no pensamento) e não múltipla. Podemos admitir que diferentes pessoas conceptualizem Sócrates de modo diferente - e aqui entra a multiplicidade - mas cada uma delas o conceptualiza de forma una.

 

Quando Santiago de Carvalho diz que «qualquer conceito é universal» equivoca-se no que toca à filosofia de Aristóteles: segundo este, as espécies não são conceitos universais mas sim comuns, isto é, «regionais», abrangendo comunidades sectoriais. Só o género e os universais supra-genéricos, como o ser, o uno, o semelhante, etc, são universais.

 

ARISTÓTELES NÃO CONCEBIA COMO UMA ESSÊNCIA CHEGA À EXISTÊNCIA?

 

Escreve ainda Mário Santiago de Carvalho, referindo-se à pretensa superioridade  do pensamento de Tomás de Aquino sobre o de Aristóteles:

 

«Podemos dizer, em resumo deste capítulo, o seguinte: ao substituir a teoria do hilomorfismo universal São Tomás pôs em relevo um tipo de composição muito particular, o da essência com a existência. (...) Considerada deste ponto de vista, à substância ou ao concreto como primeiro objecto da ontologia acresce uma consideração que Aristóteles não podia conceber (como é que uma essência chegou à existência? - como é que esta essência se mantém em existência?)» (Mário Santiago de Carvalho in Introdução de "O Ente e a Essência", pag 49: o negrito é posto por mim).

 

Ao contrário da tese que sustenta Mário Santiago de Carvalho de que o Estagirita grego não  concebia como é que as essências se mantinham em existência, Aristóteles concebia as essências como autosubsistentes, eternas, incriadas, acto, e, portanto, não se punha o problema de as essências chegarem à existência como o põe o cristianismo de São Tomás que identifica Deus com a existência pura, suporte das essências:

 

«As coisas eternas são, quanto à substância, anteriores às coisas corruptíveis e nada que esteja em potência é eterno. (...) O corruptível em sentido absoluto é o corruptível quanto à substância. Portanto, nenhuma das coisas que são incorruptíveis em sentido absoluto está em potência em sentido absoluto. (Nada impede que o esteja em algum aspecto, por exemplo, quanto à qualidade ou ao lugar.) Logo todas elas estão em acto. Tão pouco está em potência qualquer das coisas que são necessariamente. (Certamente, estas são as realidades primeiras; e, desde logo, se elas não existissem, não existiria nada.)» (Aristóteles, Metafísica, Livro IX, 1050 b, 15-20)

 

Este texto é muito claro: as essência, por exemplo a essência cavalo ou a essência árvore são incorruptíveis, anteriores aos cavalos e às nuvens físicas, e estão em acto. Isto é platonismo. Essas essências, actos em si mesmas, estão em potência para os cavalos e nuvens que se gerarem, materialmente, no futuro próximo ou longínquo. 

 

 

O mundo em Aristóteles, é eterno e incriado. Tanto quanto me é dado perceber, o cosmos apenas passou do repouso ao movimento dos astros e esferas celestes quando os planetas e estrelas contemplaram Deus, o pensamento puro e imóvel, e desejaram alcançá-lo pondo-se a rodar. As essências eternas - Sol, Lua, Vénus, Júpiter, esferas celestes, árvore, montanha, homem, cavalo, etc - não foram criadas por Deus, como sustentavam São Tomás e os teólogos cristãos, coexistem desde a eternidade com o próprio Deus, não recebem deste a existência.

O problema da essência (to ti en einai) e da existência (einai, to ón) já está colocado por Aristóteles, não é um tema que principiasse com São Tomás de Aquino. A essência eterna, forma pura, já possui existência, uma existência imaterial.

 

A INTENÇÃO (INTENTIO) É UM CONHECIMENTO DE MÉDIA DIMENSÃO?

 

Sobre a intenção (intentio), noção existente na filosofia do Aquinate e em outras da escolástica, escreveu Mário Santiago de Carvalho:

 

«Examinando mais atentamente o que isto quer dizer,  verifica-se que entre a singularidade individual (cada um dos homens) e a universalidade (o conceito, que enuncia o que há de comum aos homens) há um modo de ser próprio, intermediário, que é o modo de ser de uma determinada natureza na inteligência. O modo de ser na inteligência (i.e. o modo como se concebe uma dada realidade) partilha de ambas as notas. Ele é universal (porque se aplica uniformente aos vários indivíduos da mesma espécie) e particular (porque é apenas e sempre a representação mental do indivíduo que num certo momento pensa,»

«É este modo de ser intermediário (a que se dá o nome de "intencional") com as suas notas, que mais nos deve ocupar...» (Mário Santiago de Carvalho, Introdução a "O ente e a essência", pag 37, Contraponto; o negrito é colocado por mim). 

 

 

A intentio é a percepção empírica, o dado fenoménico, ou o conceito, isto é a ligação entre o cérebro/ inteligência ou orgão sensorial e os objectos físicos exteriores,que pode ou não exprimir integralmente o ser dos objectos exteriores. Guilherme de Ockham escreveu:

 

«É pois, a saber, que se chama intenção da alma algo que há nela apto para significar outra coisa (...)assim as palavras são signos secundários daquelas coisas das quais são signos primários as intenções da alma. Isso que há na alma, e que é signo da coisa, e do qual se compõe a proposição mental ao modo como a proposição oral se compõe de palavras, se chama algumas vezes intenção da alma; outras, conceito da alma; outras, paixão da alma; outras, semelhança da coisa..» (Ockham, Suma de la lógica in Los filósofos medievales, selección de textos, de Clemente Fernandez, pag 1074, Biblioteca de Autores Cristianos; o negrito é por mim colocado)

 

Daqui se conclui apenas que a intentio é posicionalmente um intermédio entre o mundo físico exterior e a consciência vazia ou parcialmente vazia do indivíduo. Mas não se pode dizer que a intentio é, por natureza, um intermédio no plano gnosiológico, um conhecimento misto de singular e universal, como sustenta Santiago de Carvalho no texto acima. Os números um, dois, três e quatro são intenções e constituem conceitos universais que se aplicam a biliões de singulares. Em si o conceito de dois não é singular: é um universal, aplicável universalmente a casos singulares.

 

A ESSÊNCIA DE HOMEM E A DE SÓCRATES DIFEREM SÓ NA QUESTÃO DO LIMITADO/ILIMITADO? OU TAMBÉM NO QUID DA FORMA?

 

 

Por matéria delimitada, São Tomás de Aquino entende a matéria concreta, tridimensional, com dimensões corporais definidas. Por exemplo: este homem de 189 centímetros de altura, aquela casa de 120 metros quadrados de área coberta. Escreveu o Aquinate:

 

 

«Por esta razão, deve saber-se que o princípio de individuação não é a matéria considerada de qualquer modo mas unicamente a matéria delimitada. Chamo "matéria delimitada" à que se considera submetida a dimensões determinadas. Ora esta matéria não entra na definição de homem, mas entraria na definição de Sócrates, se Sócrates tivesse definição. Na definição de homem, ao contrário, entra a matéria não-delimitada. Na definição de homem, não se põem estes ossos e esta carne, mas os ossos e a carne tomados em abstracto, que constituem a matéria não-delimitada do homem. É evidente, por conseguinte, que a essência de homem e a essência de Sócrates não diferem senão quanto ao "delimitado" e ao "não-delimitado" ». (Tomás de Aquino, O Ente e a Essência, pag 75, Contraponto; o negrito é posto por mim).

 

O equívoco de São Tomás é considerar o delimitado como a diferença entre a essência Sócrates com a essência homem que não tem limites mas apenas a proporção entre as diferentes partes. Mas falta uma diferença essencial que reside no "quid" de cada uma das essências, a individual e a específica: a forma de Sócrates, calvo, nariz achatado, lábios grossos difere da forma homem como espécie - homem não calvo, nariz correcto, etc. É, pois, a disparidade entre duas formas, a que envolve a matéria de cada corpo e a que paira como espécie. 

 

A FORMA É RECIBIDA NA MATÉRIA DELIMITADA?

 

 

Depois de se referir a duas modalidades de essências - a de Deus, que é apenas existir puro, e a das inteligências separadas, que são forma e existência - São Tomás escreve:

 

 

«Na terceira modalidade, a essência encontra-se nas substâncias compostas de matéria e de forma, nas quais o existir é igualmente recebido e finito, já que recebem o existir a partir de outro. Além disso a sua natureza ou quididade é recebida na matéria delimitada. Por esse motivo são finitas, quer pela parte superior quer pela inferior.» (Tomás de Aquino, O ente e a essência, pag 96, Contraponto; o negrito é posto por mim).

 

Neste texto há um erro de São Tomás: originalmente, e na natureza, a forma não é, em regra, recebida na matéria delimitada mas sim na matéria não delimitada, delimitando ou confinando uma porção desta. Pois a matéria só se torna delimitada, isto é, condensada, sujeita a dimensões singulares e concretas, ao receber a forma específica. As árvores nasceram quando a forma árvore se uniu à matéria-prima indeterminada, infinita, não delimitada (hylé). É óbvio que o oleiro faz o vaso imprimindo a forma numa matéria delimitada: uma certa porção de barro. Mas aqui trata-se da arte humana de produzir e não da génese originária na natureza.

 

 

 

A CONTRADIÇÃO DE ARISTÓTELES PATENTE EM SÃO TOMÁS: A ESSÊNCIA SÓ EXISTE NAS COISAS SINGULARES MAS TEM DE EXISTIR PREVIAMENTE  ÀPARTE COMO FORMA ETERNA

 

Toda a "Metafísica" de Aristóteles gira em torno de um eixo dinâmico: um essencialismo ( "as formas ou essências são eternas e preexistem aos objectos materiais" e nisto é igual a Platão) que se procura converter em existencialismo (" as formas essenciais não existem fora dos objectos materiais, fora da existência material" e aqui opõe-se a Platão) mas não tem como fazê-lo, senão mediante uma certa incoerência

 

Aristóteles é um platónico envergonhado. Critica a existência das formas platónicas mas ele mesmo é levado a admitir que as formas são eternas e têm de subsistir por si, fora da matéria. Mário Santiago de Carvalho não dá conta de se ter apercebido desta inconsistência do aristotelismo na introdução à edição que traduziu para português. Neste excerto da "Metafísica" Aristóteles admite que há formas eternas não geradas, ou seja, formas fora da matéria, tal como Platão postulava, e em seguida afirma que não existe a essência esfera fora das esferas materiais (de bronze, pedra, etc) nem a forma casa fora das casas plasmadas na matéria:

 

«Assim pois, é evidente por aquilo que foi dito que não se gera o que se denomina forma ou substância, enquanto que o composto que se denomina segundo esta gera-se, sim, e que em todo o gerado há matéria, e um é isto, e outro é aquilo.»

«Mas existe acaso uma esfera fora de estas ou uma casa fora dos tijolos? A ser assim, não ocorreria que não se geraria nenhum objecto determinado? (...) Assim, pois, é evidente que se existem realidades fora dos indivíduos, tal como alguns costumam falar das Formas, a causalidade das Formas não terá utilidade nenhuma para explicar as gerações e as substâncias.»  (Aristóteles, Metafísica, Livro VII, 1033 b, 15-30).

 

São Tomás cai na mesma incoerência inerente ao aristotelismo:

 

« De maneira semelhante, também não se pode dizer que as noções de género ou de espécie correspondam à essência, enquanto que esta é uma realidade fora das coisas singulares. como afirmavam os PLATÓNICOS» ( Tomás de Aquino, O ente e a essência, pag 82; o negrito é posto por mim).

 

Neste excerto acima, o Aquinate nega que a essência exista fora do objecto singular.

Compare-se agora com o excerto seguinte em que o filósofo dominicano afirma que a essência está fora do objecto singular e fora da alma, o que nega o nominalismo e o conceptualismo irrealista e afirma um realismo platonizante das essências:

 

«Com efeito, é falso dizer que a essência do homem, enquanto tal, tem o ser neste singular. Na verdade, se ser neste singular pertencesse ao homem enquanto é homem, nunca estaria fora deste singular. Paralelamente também, se pertencesse ao homem enquanto é homem não ser neste singular, nunca seria nele. A verdade porém está em dizer que o homem enquanto é homem, não tem que existir neste singular ou naquele, nem na alma.» (Tomás de Aquino, O ente e a essência, paginas 83-84, Contraponto; o negrito é posto por mim).

 

De duas uma: ou a essência «Homem» existe no colectivo de todos os homens e não em cada homem singular; ou existe, algures, aparte, para gerar cada homem ao unir-se à matéria-prima indeterminada (hylé).

 

A única diferença significativa entre Platão e Aristóteles, neste aspecto da cosmogénese, é que o primeiro introduz o demiurgo, um deus-operário, que imprime formas dos arquétipos na matéria e o segundo faz desaparecer, aparentemente, o demiurgo e confere às formas eternas mobilidade, autonomia, para se imprimirem na matéria, uma vez que o Deus aristotélico é imóvel e não intervém no mundo.

 

 

 

 

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Domingo, 12 de Junho de 2011
Confusões de Gilles Deleuze sobre a ontognosiologia de Kant

 

Gilles Deleuze é mais um dos filósofos que não compreendeu o núcleo essencial da doutrina de Kant. Escreveu:

 

«A ideia fundamental de que Kant denomina a sua "revolução coperniciana" consiste no seguinte: substituir a ideia de uma harmonia entre o sujeito e o objecto (acordo final) pelo princípio de uma submissão necessária do objecto ao sujeito (...)

«Seria legítimo esperar que o problema de uma submissão do objecto pudesse ser facilmente resolvido do ponto de vista de um idealismo subjectivo. Mas nenhuma solução é mais estranha ao kantismo. O realismo empírico é uma constante da filosofia crítica. Os fenómenos não são aparências, mas também não são produtos da nossa actividade. Afectam-nos na medida em que somos sujeitos passivos e receptivos. Podem ser-nos submetidos; precisamente porque não se trata de coisas em si. Mas como o serão, sabendo-se que não somos nós que os produzimos?» (Gilles Deleuze, A filosofia crítica de Kant, pag 23, Edições 70; o negrito é de minha autoria).

 

O equívoco de Deleuze reside em dizer que os fenómenos «afectam-nos na medida em que somos sujeitos passivos». É um erro. Quem nos afecta não são os fenómenos, mas os númenos, entes metafísicos. É certo que Kant denomina a sensibilidade de faculdade receptiva mas ao mesmo tempo mostra, sem ser muito claro, que esta cria o fenómeno, ou seja, é activa:

 

«Dou o nome de matéria ao que no fenómeno corresponde à sensação; ao que, porém possibilita que o diverso do fenómeno possa ser ordenado segundo determinadas relações dou o nome de forma do fenómeno. Uma vez que aquilo, no qual as sensações unicamente se podem ordenar e adquirir determinada forma não pode, por sua vez, ser sensação, segue-se que se a matéria de todos os fenómenos nos é dada somente a posteriori, a sua forma deve encontrar-se a priori no espírito, pronta a aplicar-se a ela e portanto tem que poder ser considerada independentemente de qualquer sensação.» (Kant, Crítica da Razão Pura, pag 62, Fundação Calouste Gulbenkian).

 

Conforme se depreende desta citação a forma do fenómeno - por exemplo: maçã e cadeira são fenómenos - está a priori no espírito, isto é, na sensibilidade. Não está, pois no próprio fenómeno como coisa fora de nós, como sustenta Deleuze ao dizer «os fenómenos «também não são produtos da nossa actividade.». Ora, a forma é aplicada para criar o fenómeno? Sim. Quem aplica a forma? O espírito do sujeito, que se compõe de sensibilidade, entendimento e razão.

 Por outro lado, a matéria do fenómeno é dada - eu diria: é forjada - a posteriori. Há assim um construtivismo kantiano: a forma a priori junta-se à matéria a posteriori para gerar o fenómeno espacial ou objecto exterior (a árvore, a nuvem, a mão, etc). E isto passa-se no interior da sensibilidade de cada um que inclui o espaço exterior ao corpo (Kant é idealista).

 

«...Os chamados objectos exteriores são apenas simples representações da nossa sensibilidade, cuja forma é o espaço, mas cujo verdadeiro correlato, isto é, a coisa em si, não é nem pode ser conhecida por seu intermédio; de resto, jamais se pergunta por ela na experiência.» (Kant, Crítica da Razão Pura, pag 70, Fundação Calouste Gulbenkian; o negrito é colocado por mim).

 

 A matéria dos fenómemos é a sensação: eles não são senão projecções sensoriais fora do nosso corpo mas dentro do nosso espírito, essa imensa abóbada cósmica que envolve, concentricamente, o nosso corpo. Os objectos exteriores são apenas representações, conteúdos da consciência fora do corpo físico do eu perceptivo: é o mesmo que diz Berkeley, por outras palavras - ainda que Kant se procure demarcar falaciosamente daquele filósofo escocês. Os fenómenos são criações da sensibilidade e do entendimento e situam-se dentro da primeira. Deleuze afirma sobre os fenómenos que «não somos nós que os produzimos». É falso. Nós criamos os fenómenos através das formas a priori da sensibilidade (espaço e tempo) e das categorias do entendimento. Deleuze nem sequer percebe isso.

 

 

Alguém, no mundo universitário, apontou esta errónea interpretação de Deleuze sobre a doutrina de Kant? Não. Isto significa que o universo dos catedráticos de filosofia partilha a mesma superficialidade, a mesma ausência de profundidade de pensamento sobre a ontolognosiologia de Kant. Sejam Popper, Deleuze,  Habermas, Blackburn, Nagel, Sartre ou até o excepcional Heidegger, todos conceptualizam, mais ou menos confusamente, a génese e a natureza do fenómeno em Kant. Há, pois, que romper com a tradição contemporânea das interpretações esquivas e equívocas de Kant. É o que fazemos.

  

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Domingo, 15 de Maio de 2011
Roy Wood Sellars: o conhecimento e o dualismo forma-matéria

Roy Wood Sellars (1880-1973), filósofo norte-americano do "realismo crítico" e do humanismo religioso, escreveu, sobre o dualismo forma-matéria:

 

« Em primeiro lugar, não vejo necessidade de postular um dualismo metafísico de forma e matéria. A matéria é uma abstracção tanto como a forma. A realidade é matéria informada: tem estrutura e organização, tem uma determinada natureza. A isto se deve que as nossas categorias: espaço, tempo, causalidade, etc, tenham validade. Na medida em que o aristotelismo e o escolasticismo separaram a matéria da forma incorreram em um dualismo vicioso e desnecessário. É a realidade que é activa e sede de processos; não uma matéria nem uma forma. »

 

«Ora bem, se o objecto do conhecimento é uma matéria informada, poderia logo colocar-se o problema: que elemento do objecto se transmite à mente? Falta dizer que não é o ser, mas sim a "forma". Transmitir o ser é impossível, porque a coisa deve permanecer fora da mente que a conhece, e pela mesma razão, conhecer a coisa é não ser a coisa. Mas conhecer uma coisa não é, tampouco, ter uma reprodução à maneira de cópia dela. Que é, pois, o conhecimento? É a posse consciente da "forma" de uma coisa por parte da mente, a saber, da sua localização, tamanho, estrutura, possibilidades causais, etc. É a captação vicária dos traços reproduzíveis de uma coisa. Conhecer é conhecer a própria coisa.» (Roy Wood Sellars, citado in Paul Kurtz, «Filosofia norteamericana en el siglo veinte», Textos escogidos, Fondo de Cultura Económica, México, pag. 346, 1972; a letra a negrito é posta por mim).

 

Sem dúvida, parece, à primeira vista, um texto de filosofia de grande qualidade.

Começarei por uma ligeira correcção da frase de Sellars: «A matéria é uma abstracção tanto como a forma.» Não é a matéria que é uma abstracção: ela existe, indissociavelmente ligada à forma e só por abstracção captamos completamente o conceito de matéria. 

 

Mas se acusa o aristotelismo e a escolástica de ter introduzido um dualismo artificial forma-matéria, Sellars parece postular um dualismo forma-matéria, algo rígido, no plano ontognosiológico: o ser seria a matéria, informada, e o conhecer - a percepção empírica, o conceito - seria só a forma.

Não me parece exacto este dualismo: na apreensão do ser, existe alguma matéria deste que passa para o interior da mente humana. O que é a cor verde, por exemplo? Forma ou matéria? A côr verde de um campo está presente na nossa percepção, tal como o sabor doce do mel que saboreamos. Fotões, sejam eles exteriores ou interiores à mente, compõem a cor. É certo que os fotões não são matéria mas no sentido aristotélico de matéria como substrato, a cor parece-me ser um substrato da forma percebida, não da forma real exterior. A côr é uma espécie de "matéria" sem matéria-massa. Por isso,dizer que conhecer é só apreender a forma e não a matéria é uma interpretação «óptica» do conhecimento

E dizer que o mel é doce, ao prová-lo, é apreender apenas a forma do mel? Ou é mesmo absorver uma ínfima parte do ser do mel?

  

 

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Quarta-feira, 5 de Janeiro de 2011
Sobre o ente, a substância e o acidente, o quid e a quididade, em Teodorico de Freiberg

Teodorico de Freiberg, um pensador dominicano alemão (1250? - 1320) que se opôs à doutrina de Tomás de Aquino, escreveu sobre o ente: 

 

«1. Ora o ente é o que há de mais geral. Compreende em si, na sua extensão, tudo, quer segundo a coisa quer segundo a significação. Significa a essência de tudo aquilo de que é predicado, seja predicado de uma substância seja de um acidente, conforme diz o Filósofo no princípio do Livro IV da Metafísica. Não há inconveniente em ser predicado da substância e do acidente, indicando a essência daquilo de que é predicado. Isto porque o ser é predicado da substância e do acidente segundo uma noção diferente, dado que a substância e o acidente derivam de noções diferentes, enquanto são entes.»

 

«2. De facto ambos são ditos "ente" enquanto têm uma certa essência. Mas a substância tem a essência segundo uma noção diferente da que o acidente tem. Isto é claro com base naquilo que Agostinho diz no capítulo 16 de A Imortalidade da Alma: «O que faz com que qualquer essência seja uma essência é o facto de ser.» Contudo o ser que convém à substância tem uma dada noção e enquanto pertence ao acidente tem uma noção diferente.» (Teodorico de Freiberg, O ente e a essência, Minerva Coimbra, 2003, pags. 27-28; o negrito é colocado por mim).

 

Teodorico não é de uma clareza absoluta porque não distingue as propriedades do ser das propriedades da essência. Joga na ambiguidade do termo "ser" que, ora é interpretado como existir ora como configuração, quid. E invoca Santo Agostinho mas, de facto, este equivocou-se: não é o ser que faz com que uma essência seja essência; o ser faz com que uma essência exista enquanto essência, ou seja, esteja impressa, plasmada, numa matéria indeterminada (o ser) gerando um ente concreto. Ser é ontologia e essência é eidologia. Em certo sentido, esta é anterior à ontologia. Se eu pensar em um cavalo com tromba de elefante e barbatanas de peixe em vez de patas traseiras penso numa essência que não existe no mundo biocósmico, mas que existe apenas na minha imaginação. Logo, não é o ser que faz com que a essência seja: é a forma, como princípio, que desenha ou estrutura a essência, não o ser. Há essências que são e outras que não são. Homem de sangue verde é uma essência imaginária, que não é (não existe no real), mas homem de sangue vermelho é uma essência real. Logo não é o ser que faz a essência: o ser é um correlato da essência, não o autor ou causa eficiente, fabricante, daquela.  Parece que Platão, sem embargo de deslizar anfibologicamente em dois sentidos da palavra ser - existência e conjunto das formas imóveis inteligíveis - terá teorizado a Díade do Grande e do Pequeno como fonte das formas ou essências e o Uno como fonte do ser.

 

Também não parece que «o ser que convém à substância tem uma dada noção e enquanto pertence ao acidente tem uma noção diferente». Se entendermos por ser o existir, a mesma noção de existir se aplica à substância - a forma permanente do ente - e ao acidente - a forma transitória e parcelar do ente.

 

O ente (tó on) é para Aristóteles um sujeito indeterminado, universal, apto a contrair-se em qualquer substância: as suas características primordiais são existir e ser uno. « E o ente constitui o comum a todas as coisas» (Aristóteles, Metafísica, 1004 b, 20-25) .A filosofia - séculos mais tarde designada ontologia - é a ciência do ente, do que é. Género, espécie, substância primeira e acidente são modos do ente.

 

Teodorico distingue a quididade - uma qualidade determinada e estrutural; a essência ou forma da espécie, em Aristóteles - do quid ( que o tradutor Mário Santiago de Carvalho traduz por "o que" e nós por "o quê é») - a qualidade determinada particularizada ou individuada em tal ou qual ente. Mas mistura o quid com o quod e nesse sentido afasta-se de Aristóteles:

 

«4. Mas "quididade", que deriva de "o que" por abstracção, significa apenas o princípio formal que faz com que uma coisa seja essencialmente qualquer coisa. E é isto que comunmente se diz, e bem, ou seja, que nos simples a quididade e aquilo que é "o que" se identificam. Ora isto não acontece nos compostos de matéria e de forma. Nestes só a forma é quididade.» (Teodorico de Freiberg, O ente e a essência, Minerva Coimbra, 2003, pag 32; o negrito é colocado por mim).

 

«8. Neste segundo modo de significação, tomado em sentido comum, é evidente que "brancura" e "branco" diferem quanto à significação. "Brancura" significa somente a qualidade, e "branco" significa o agregado do sujeito e da qualidade. E assim se pode dizer, acerca de "quididade" e daquilo que "o que" é, que "quididade" significa apenas a forma, mas "o que", mesmo nas coisas compostas, significa toda a essência da coisa, quer dizer, o agregado de matéria e de forma.» (ibid, pags 36-37; o negrito é colocado por mim).

 

A minha discordância relativamente a esta posição, inteligentemente explanada, é a seguinte: o quid ou quê-é, na perspectiva aristotélica, não engloba a totalidade do ente, mas constitui, de certo modo, o invólucro, a configuração, a estrutura deste. Uma estátua de mármore é um quid, não pelo mármore em bruto, mas pela forma que neste o escultor imprimiu. O quod é o ente abstractamente considerado, como algo existente, sem forma determinada.

A CONFUSÃO DA EXISTÊNCIA COM A ESSÊNCIA

 

A incoerência fende,subtilmente, o texto de Teodorico:

 

«5. O ser e "o que é" diferem no seguinte. O ser designa toda a essência da coisa. "O que é" significa uma parte da coisa, nas coisas compostas.» (Teodorico de Freiberg, O ente e a essência, Minerva Coimbra, 2003, pag 45; o negrito é colocado por mim).

 

Ora isto contradiz a seguinte passagem acima citada:

 

«E assim se pode dizer, acerca de "quididade" e daquilo que "o que" é, que "quididade" significa apenas a forma, mas "o que", mesmo nas coisas compostas, significa toda a essência da coisa, quer dizer, o agregado de matéria e de forma.»(ibid, pags 36-37; o negrito é colocado por mim).

 

Comparando estas dois pensamentos, deduzimos que, na interpretação de Teodorico, o ser e o quê-é (na sua terminologia: "o que") são uma e a mesma coisa já que «significam toda a essência da coisa». Isto é um equívoco, uma confusão entre existência (ser) e essência ("quê-é, "o que").

O prefaciador Mário Santiago de Carvalho, sem embargo dos seus altos méritos na difusão da filosofia medieval, não parece ter detectado o equívoco do dominicano alemão do século XIV, equívoco que se desmonta assim: se "o que" ou quid constitui toda a essência da coisa, isto é, o composto forma-matéria, como sustentou Teodorico, então a substância primeira ou ente individualizado - exemplo: este vaso azul de barro - em nada se distingue da sua espécie ou substância segunda - o conjunto dos vasos azuis de barro. Aristóteles apontou a matéria como princípio de individuação mas essa teoria está aqui ausente. Em Teodorico, a matéria, originariamente destituída de forma, está incluída no quid, o que constitui um desvio do pensamento aristotélico e uma confusão entre a forma, acidental ou essencial (quid) e a não forma (matéria-prima, hylé).

 

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Terça-feira, 29 de Junho de 2010
Equivale a Chora de Platão à Hylé de Aristóteles?

No importante diálogo «Timeu» Platão expõe a sua tese sobre o espaço vazio («Chora») da seguinte maneira:

 

« Há primeiro a forma imutável que não nasceu e que não perecerá, que não recebe nela, nada de estranho (...) Há uma segunda espécie, que tem o mesmo nome que a primeira e é semelhante à primeira mas sensível; que é gerada, sempre em movimento, que nasce num lugar determinado para depois o abandonar e perecer, e que é acessível à opinião acompanhada de sensação. Enfim, há sempre uma terceira espécie, a do lugar (chora), que não admite destruição e que fornece um lugar a todos os objectos que nascem. Só é perceptível através de um raciocínio bastardo, onde a percepção não entra; dificilmente podemos acreditar nela. Entrevemo-la como num sonho, dizendo que é necessário que tudo aquilo que é esteja num lugar determinado, ocupe um certo sítio, e que aquilo que não está nem sobre a terra nem em algum lugar debaixo do céu não é nada.» (Platão, Timeu, Publicações Europa-América, pag 277).

 

Platão fala, pois, de três níveis: o da forma imutável ou arquétipo, situada acima do céu visível, no hiperurânio; o das formas mutáveis e corruptíveis, porque imersas na matéria em devir, no mundo terrestre; o do espaço, como imenso lugar vazio, receptáculo das formas e da matéria caótica. Omite aqui um nível que refere noutros textos: o dos astros incorruptíveis em movimento eterno tecendo o tempo, que constitui o Mundo do Semelhante.

 

Aristóteles acusa, injustamente, em certa medida, Platão de confundir o espaço com a matéria:

 

«Daí que Platão diga no Timeu que a matéria e o espaço são o mesmo, pois que o participável (metaléptikon) e o espaço são uma e a mesma coisa - ainda que fale de maneira diferente nos chamados Ensinamentos não escritos, identificou sem embargo o lugar e o espaço. Todos dizem que o lugar é algo, mas só ele tentou dizer o que é.» (Aristóteles, Física, Livro IV, 209 a; a letra negrita é posta por mim).

 

Há algo de aparentemente incompreensível neste texto: a afirmação de que Platão identificou o lugar com o espaço. Mas então o lugar não é uma porção de espaço? Parece que não, na concepção aristotélica.

Platão identificou de facto o espaço puro com uma espécie invisível, extensa e passiva, que traduz a hylé ou matéria-prima de Aristóteles. Não identificou, no entanto, este espaço puro ou mãe de todas as coisas ou receptáculo vazio universal com água, terra, fogo ou ar ou alguma matéria qualitativamente determinada. Escreveu:

 

«O mesmo se passa com aquilo que deve receber, frequentemente, em boas condições e em toda a sua extensão, as imagens de todos os seres eternos: convém que seja, por natureza, alheia a todas as formas. É por isso que não se deve dizer que a mãe e o receptáculo de tudo o que nasceu visível ou sensível de uma maneira ou doutra é a terra,ou o ar, ou o fogo, ou a água, ou alguma das coisas que delas se formaram ou que lhes deram orgem. Mas se dissermos que é uma espécie invisível e sem forma que recebe tudo, e que participa do inteligível de uma maneira bastante obscura e muito difícil de compreender, não mentiremos. (...) A parte dela que está em ignição parece ser fogo, a parte liquefeita água, e terra e ar na medida em que recebe imagens destes elementos.» ( Platão, Timeu, Diálogos, PEA, Pag. 276)

 

Eis como Aristóteles dissocia lugar de espaço abstracto ou vazio:

«Ora bem, se o lugar não é nenhuma de estas três coisas, quer dizer, nem a forma, nem a matéria, nem uma extensão que esteja sempre presente e seja diferente da extensão da coisa deslocada, o lugar terá que ser então a última das quatro, a saber:  o limite do corpo continente que está em contacto com o corpo contido. (...)»

«O lugar, ao contrário, quer ser imóvel, por isso o lugar é mais precisamente o rio total, porque como totalidade é imóvel. Por conseguinte, o lugar de uma coisa é o primeiro limite imóvel de o que a contém.» (Aristóteles, Física, Livro IV, 212 a; a letra negrita é posta por mim).

Lugar, é, pois, para Aristóteles um corpo estar contido noutro (exemplo: a planície é um lugar que contêm os sobreiros). Não é o mesmo que espaço (chora) ou extensão que está sempre presente e que transcende a extensão do movimento dos corpos e da presença deste.

Platão não usa o termo hylé, segundo Ivan Gobry, termo que é usado frequentemente por Aristóteles e designa a matéria-prima, indiferenciada, fonte monoelementar de todos os objectos. Na verdade, uma árvore, uma rocha, a água de um rio ou o fogo são feitos da mesma matéria-prima universal que é moldada pelas formas madeira, pedra, água e fogo.

 

Ora qual é a diferença entre a chora de Platão e a hyle de Aristóteles? Aparentemente, a chora é um lugar, é tridimensional - possui comprimento, largura e altura indeterminados - ao passo que a hylé não é um lugar, não ocupa lugar e não é senão uma "massa"  informe que não existe mas, de algum modo, é. Aristóteles retirou a extensão à chora de Platão mas conservou-lhe o carácter de matéria sem forma, moldável, receptáculo universal das formas. Ao desespacializar a matéria-prima, Aristóteles abriu caminho  à metafísica cristã da criação do mundo a partir do Nada ("ex nihil"), ainda que no Estagirita as formas não estejam no seio de Deus mas sejam eternamente subsistentes ao lado da hylé, plástica e moldável.

A teologia cristã foi, por conseguinte, inspirar-se em Aristóteles e em Plotino - para este, as essências das coisas repousam, como modelos exemplares, no seio da mente divina, ao passo que Platão separava Deus das Ideias eternas e autosubsistentes - para construir o seu sistema.

 

Com a diferença de que o espaço segundo Kant é subjectivo ou intersubjectivo e em Platão não, Kant equipara-se a Platão na maneira de conceber o espaço: é uma estrutura formal, vazia, destituída de matéria, feita de figuras geométricas. É evidente que Platão não refere a essência do espaço como infinitas figuras geométricas mas como o receptáculo dessas formas porque os modelos destas estão no mundo inteligível, suprafísico. Mas o espaço, apesar do seu vazio formal, não é o nada: é o recipiente eterno que faz frente ao inteligível. www.filosofar.blogs.sapo.pt

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Domingo, 20 de Junho de 2010
Equívocos no «Dicionário de Filósofos» sobre a doutrina de Aristóteles

O “Dicionário de Filósofos”, de Noella Baraquin e Jacqueline Lafitte, sem embargo de ser aparentemente uma obra de elevada qualidade filosófica, comporta erros sobre a teoria de Aristóteles, particularmente na doutrina da forma e da essência e na doutrina das quatro causas.

 

A FORMA (MORPHÈ) NÃO É A ESSÊNCIA (EIDOS)

 

Refere o dicionário a respeito da forma, da essência e das causas no sistema de Aristóteles:

 

«A forma sob a qual a coisa aparece constitui a sua essência e é indissociável da matéria (hilemorfismo). Ela é também o princípio que lhe confere a existência e que faz com que um ser pertença a uma dada espécie (princípio de individuação).»

«Assim, a existência de outras espécies corresponde ao movimento, à mudança de ordem do lugar, da quantidade e da qualidade.»

«A substância depende de quatro causas: material (o elemento), formal (a forma, o modelo), a causa eficiente ou motriz (o agente que actualiza o potencial) a causa final (que não é senão a substância ou essência, a forma para a qual tende a matéria.»

«Sendo agente e fim uma e a mesma coisa que a forma, as causas são redutíveis à forma e à matéria.» (Noella Baraquin e Jacqueline Lafitte, Dicionário de Filósofos, Edições 70, Pág 31-32).

 

Antes de mais, importa, rectificando o dicionário, frisar que a forma sob a qual a coisa aparece não constitui a sua essência no quadro do pensamento de Aristóteles: a forma individualizada, última, da coisa, é diferente da essência ou forma específica (eidos) que está na sua génese. A essência (eidos) precede a forma singular (morphé) porque esta resulta da impressão daquela na matéria-prima. Se a forma fosse a essência, diríamos que a forma Sócrates ou a forma Platão seriam a essência destes, o que Aristóteles nega rotundamente.

Também na citação acima é confusa a referência ao princípio da individuação. Não é este que faz com que um ente pertença a uma dada espécie, mas sim o princípio da especificação, a forma comum. A individuação conferida pela matéria afasta a coisa da espécie, singulariza.

 

AS QUATRO CAUSAS NÃO SE REDUZEM A DUAS, A FINAL NÃO É A FORMAL

 

A causa final está mal definida de um modo geral: confunde-se com a causa formal.

Reduzir as causas eficiente, formal e final a uma só é um equívoco: significaria dizer que o fabricante do relógio (causa eficiente), a forma do relógio (causa formal) e a contagem do tempo (causa final) são a mesma coisa, o que é absurdo.

Ora esta redução das quatro causas a duas é negada, em partes capitais da «Metafísica», pelo próprio Aristóteles que escreveu:

 

«Chama-se causa, num primeiro sentido, a matéria imanente da qual se faz algo; por exemplo, o bronze é causa da estátua, e a prata da taça, e também os géneros destas coisas. Em outro sentido, é causa a espécie e o modelo; e este é o enunciado da essência e os seus géneros (por exemplo, da oitava musical, a relação de dois para um, e, em suma, o número); e as partes que há no enunciado. Ademais, aquilo de onde procede o primeiro princípio da mudança ou da quietude; por exemplo, o que aconselhou é causa da acção, e o pai a causa do filho e, em suma, o agente, do que é feito, e o que produz a mudança do que a sofre. Ademais o que é como o fim; e isto é aquilo para o que algo se faz, por exemplo, do passear é causa a saúde. Porquê, com efeito, se passeia? Dizemos: para estar são.»

(Aristóteles, Metafísica, Livro V, 1013 a, Edición trilingue, Gredos, Madrid, pág 218-219)

 

 

Vemos que a definição do Dicionário «a causa final (que não é senão a substância ou essência, a forma para a qual tende a matéria.» está genericamente errada, uma vez que em numerosos casos a finalidade não é forma mas sim um estado afectivo ou qualidade. Exemplo: a causa final de um almoço de amigos não é a comida (substância ou essência) mas sim o convívio alegre e fraterno e a manutenção do corpo.

A causa final não é, em muitos casos, a forma acabada, perfeita (a enteléquia)  – por exemplo, o corpo perfeito que, num homem idoso, já não pode acontecer - mas um outro estado: a saúde, no exemplo dado por Aristóteles. Sob um ponto de vista orgânico-biológico poder-se-ia dizer que a causa final do bebé é um corpo de jovem adulto – o que daria alguma razão às autoras do Dicionário – mas a definição de causa final continua a ser deficiente, errónea em geral.

Mesmo que Aristóteles nalgum texto tivesse escrito que as quatro causas se reduzem a duas – o que é possível, dado que há incoerências dentro do texto da “Metafísica”  e em outros textos aristotélicos – é equívoco colocar essa tese num Dicionário de Filosofia como corolário da teoria das quatro causas.

 

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