Nigel Warburton escreveu sobre o utilitarismo ou doutrina da extensão da felicidade ao maior número possível de pessoas com resultados práticos, mesmo à custa de ignorar ou prejudicar uma minoria ou o próprio agente da ação:
«Alguns filósofos sugeriram outra versão modificada da teoria, conhecida como utilitarismo das regras, como uma forma de contornar a objecção que o utilitarismo normal (também conhecido como utilitarismo dos actos) tem muitas consequências desagradáveis. Esta teoria procura combinar os melhores aspectos do utilitarismo dos actos com os melhores aspectos das éticas deontológicas. Por exemplo, uma vez que, em geral, castigar pessoas inocentes produz mais infelicidade do que felicidade, os utilitaristas das regras adoptariam a regra "nunca castigues os inocentes", apesar de poderem existir casos particulares nos quais o castigo de inocentes produziria mais felicidade do que infelicidade - tal como quando actua como um factor de forte dissuassão contra o crime violento.»
«Os utilitaristas das regras, em vez de avaliarem separadamente as consequências de cada acção, adoptam regras gerais àcerca dos géneros de acções que geralmente produzem maior felicidade para o maior número de pessoas.» (Nigel Warburton, Elementos Básicos de Filosofia, Gradiva, pag. 92).
De um modo geral, os filósofos ingleses e norte-americanos são mais assistemáticos do que os filósofos alemães, franceses e da Europa continental em geral. Isso condu-los a cortes epistemológicos, por vezes geniais - por exemplo, David Hume ao colocar em causa a persistência da conexão causa-efeito ou do "eu substância" - mas fá-los cair frequentemente em divisões artificiais (hiper-análise). Esta divisão entre "dois" utilitarismos é um equívoco.
John Stuart Mill era, presumivelmente, mais inteligente do que Nigel Warburton, Simon Blackburn, John Searle e esta pleiade de catedráticos ingleses e norte-americanos em voga no século XXI: não caiu no erro de dividir o utilitarismo em "das regras" e dos "actos".
Mill, supondo-se autor de uma moral nominalista, sem leis gerais determinadas, a não ser o princípio da felicidade para o maior número, referiu duas correntes éticas que designou por moral indutiva e por moral intuitiva, extrínsecas ao utilitarismo, correntes que os seus «herdeiros» revisionistas designam por "utilitarismo das regras":
«A escola de ética intuitiva, não menos do que a escola a que pode chamar-se indutiva, insiste na necessidade de leis gerais. Ambos concordam que a moralidade de uma acção particular não é uma questão de percepção directa, mas da aplicação de uma lei a um caso particular. Aceitam também, em grande parte, as mesmas leis morais; mas diferem quanto às provas, e à fonte da qual derivam a sua autoridade. Segundo uma das opiniões, os princípios da moral são evidentes a priori, nada requerendo para exigir assentimento, excepto que o significado dos termos seja compreendido. Segundo a outra doutrina, o correcto e o incorrecto, bem como a verdade e a falsidade, são questões de observação e de experiência. Mas ambas defendem de igual modo que a moralidade tem de ser deduzida de princípios; e a escola intuitiva afirma com tanta veemência como a indutiva a existência de uma ciência da moral. »
(John Stuart Mill,Utilitarismo, Gradiva, Lisboa, 2005, pags. 45; o negrito é nosso).
O utilitarismo "das regras" não é mais do que um utilitarismo "dos actos". Senão, vejamos. Os hiper-analíticos ou pensadores fragmentários (Nigel Warburton e todos os que perfilham esta distinção) aceitariam os seguintes exemplos:
«Utilitarista dos actos - Um homem que pretende ter relações sexuais, consentidas, a todo o custo, com uma mulher e que, não olha a meios, não usando preservativo, e fazendo-o num jardim público sem ligar ao incómodo que causam em transeuntes. "Não tem regras" embora o acto agrade a ambos os participantes.
Utilitarista das regras - Um homem que pretende ter relações sexuais com uma mulher mas que estabelece regras prévias condicionantes desse fim: usar preservativo, obter a total anuência da mulher pela sedução sem coacção. E ambos obtêm satisfação.»
Se meditarmos, descobrimos que o utilitarista das regras deste exemplo é apenas um utilitarista de actos múltiplos. De facto, pretende atingir, em simultâneo, vários objectivos ou resultados:
1) Fazer amor com a mulher X;
2) Fazer amor de forma protegida contra doenças ou procriação indesejada, isto é, usando preservativo;
3) Proporcionar à mulher um prazer espontâneo, fruto da sedução mútua, sem coacção.
O que se chama regra não é senão a realização simultânea de diferentes actos ou de um acto com resultados múltiplos. Na verdade, o impetuoso apaixonado que quer, a qualquer preço, nem que seja num relvado público e sem preservativo, possuir uma mulher (classificado como utilitarista dos actos) também segue uma regra: a da expansão incontrolada do seu instinto.
Poder-se-ia dizer , portanto, que o utilitarismo "dos actos" inclui as regras, formuladas ad hoc ou previamente meditadas, não havendo, por isso, razões para a destrinça entre duas modalidades de utilitarismo.
Distinguir entre utilitarismo das regras e utilitarismo dos actos é tão absurdo como se dividíssemos o marxismo em "marxismo das regras" e "marxismo dos actos" ou o cristianismo em "cristianismo das regras" e "cristianismo dos actos". O marxismo é um só: inclui regras e actos num só momento; o cristianismo é um só, funde as regras teoréticas e a acção sensível numa só coisa, num só momento, o da acção.
Por analogia, o utilitarismo das "regras" e dos "actos" são um e o mesmo utilitarismo: a regra formula-se e dissolve-se no acto onde o resultado é o que importa.
© (Direitos de autor para Francisco Limpo de Faria Queiroz)
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