No «Parménides ou das Ideias», diálogo platónico semeado de escolhos e reentrâncias sofísticas que fazem naufragar o barco da razão filosófica, Platão avança a teorização do instante como o lugar ou momento intemporal da mudança das coisas. O instantâneo ou instante (em grego: exaíphnés) é uma mudança que ocorre fora do tempo porque é um presente fugaz e o tempo compõe-se de passado, presente e futuro. Aristóteles escreveria na Física:
«"Instantaneamente" (em grego: exaíphnés) significa um sair fora de si em um tempo imperceptível e toda a mudança é por natureza um sair fora de si»
«Todas as coisas se geram e destroem no tempo. ( ) Mas o tempo não é a causa disto, mas dá-se o caso de que a mudança se produz no tempo.» (Aristóteles, Física, Livro IV, 224 a).
Vejamos um excerto do diálogo construído por Platão, no qual não se afirma que «o instante não está no espaço» mas sim que não pertence nem ao tempo, nem ao repouso nem ao movimento:
«PARMÉNIDES
Não estamos numa coisa estranha quando mudamos ?
ARISTÓTELES
A que coisa te referes ?
PARMÉNIDES
Refiro-me ao instante, pois realmente o instante representa o ponto em que mudamos, passando de uma maneira de ser a outra. Com efeito: enquanto o repouso continua sendo repouso, não se produz mudança; enquanto o movimento continua sendo movimento, não se produz mutação. Mas essa estranha coisa a que chamamos instante está entre o repouso e o movimento, sem existir no tempo, e nele acaba e começa a mudança, quer do movimento ao repouso, quer do repouso ao movimento.
ARISTÓTELES
É possível que assim seja.
PARMÉNIDES
Se assim é, se o uno está em repouso e em movimento, passa de um estado a outro, pois essa é a única maneira de estar em ambos os casos. Se muda, muda no instante; e, quando muda, não é no tempo, nem no movimento, nem no repouso.
ARISTÓTELES
Com efeito.
PARMÉNIDES
Dar-se-á o mesmo com as outras mudanças? Quando o uno passa do ser para o não ser, ou do não ser para o ser, diremos que se encontra num estado intermédio entre certas formas de movimento e de repouso, que não é nem ser nem não-ser, que não nasce nem morre?
ARISTÓTELES
Provavelmente.
PARMÉNIDES
Pela mesma razão, quando passa da unidade à pluralidade e ao invés, o uno não é uno nem múltiplo; não se divide nem se reúne. Analogamente, quando passa do semelhante ao dissemelhante, e do dissemelhante ao semelhante, não é semelhante nem dissemelhante: não se assemelha nem desassemelha. E também quando passa do pequeno ao grande e ao igual, e inversamente, não é grande nem pequeno, nem igual, nem aumenta, nem diminui, nem se iguala.
ARISTÓTELES
Assim parece.»
(Platão, Parménides ou das Ideias, Editorial Inquérito, Págs. 111-112; a letra negrita é posta por nós).
A concepção de Platão sobre o instante, neste trecho, necessita de clarificação: Parménides qualifica o instante como um intermédio entre repouso e movimento, ser e não ser, intermédio que não estaria no tempo. Mas então o tempo não é feito de instantes? Neste diálogo, Platão reduz o instante ao salto qualitativo entre dois estados do ser repouso e movimento - e retira-lhe a qualidade de vértebra da coluna vertebral do tempo. Há, pois, um instante atemporal, uma duração fora do tempo, que corresponde ao salto de qualidade. Será o instante a eternidade? Ou será o pólo exactamente oposto o infinitamente pequeno em duração à incomensurável eternidade a duração infinita?
Ao sustentar que «essa estranha coisa a que chamamos instante está entre o repouso e o movimento, sem existir no tempo, e nele acaba e começa a mudança, quer do movimento ao repouso, quer do repouso ao movimento» Platão reduz a mudança a uma só modalidade: a mudança brusca, o salto de qualidade. E a mudança quantitativa, o fluxo contínuo como as águas de um rio onde só a quantidade mas não a qualidade muda a cada instante? O movimento é uma mudança contínua de posição ou seja, matematicamente, uma mudança de quantidade de lugar - admitindo que cada lugar em que o corpo se encontra se pode designar por uma quantidade relativamente a um ponto de referência - se não mesmo de qualidade.
A par deste rasgo filosófico original sobre a natureza do instante, como hiato ontológico, a personagem Parménides continua a discorrer de forma sofística ao dizer: «Pela mesma razão, quando passa da unidade à pluralidade e ao invés, o uno não é uno nem múltiplo; não se divide nem se reúne. O uno não passa da unidade à multiplicidade».
Ora, ao invés do que Platão escreve na primeira parte desta frase acima, o uno é sempre o mesmo, como qualidade . O universo uno, a célula una ou o cubo uno, sim, podem passar da unidade à multiplicidade: o universo pode dividir-se em vários, a célula una pode dividir-se em duas, o cubo uno pode ser cortado em várias fatias. As coisas unas, podem ser invadida pela multiplicidade sem deixar de ser unas no contorno exterior ou podem fragmentar-se, originando várias. O que passa da unidade à multiplicidade não é o uno mas a coisa una onde se dá a qualidade uno. Exemplo: o universo exclusivamente feito de água (caos) na cosmogonia de Tales de Mileto é uno e dá lugar a um universo múltiplo composto de astros, plantas, minerais, animais (cosmos) e este universo hierarquizado voltará a ser caos. Os contrários são irredutíveis entre si, como muito bem salientara Platão no Fédon: uno e múltiplo nunca se convertem um no outro, as coisas em que ocorrem é que passam do uno ao múltiplo e viceversa.
Marcante é a tese de Platão de que no instante (da mudança qualitativa), a coisa deixa de possuir forma, deixa o campo do ser e do não ser, o campo do repouso e do movimento, violando, na aparência, o princípio do terceiro excluído. É talvez a concepção de que o instante - de ruptura, dizemos - é um momento de caos entre dois estados «cósmicos» da coisa.
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