Eis mais um exame nacional de filosofia no ensino secundário em Portugal, a prova 714 de 19 de Junho de 2017, mal concebido por partidários da filosofia analítica, corrente que possui um forte lobby académico junto do Ministério da Educação. Um traço comum aos autores do exame é a sua incapacidade em pensar e hierarquizar dialeticamente os temas, as questões e as respostas - dialética implica as noções de contrário, semi contrário e colateral, noções estranhas a estes senhores, mestres ou doutorados.Vejamos as questões equívocas que retiram, injustamente, 10, 20, 30, 40, 50 ou mais pontos a alunos que pensam bem e responderam bem.
Comecemos pelas questões de escolha múltipla em cada uma das quais há quatro hipóteses de resposta sendo apenas considerada certa uma das hipóteses.
GRUPO I
2. Leia o texto seguinte.
Tal como os estudos experimentais mostraram, [...] fazemos o que fazemos por causa do que aconteceu [...]. Infelizmente, o que aconteceu deixa poucas pistas observáveis, e os motivos para fazermos o que fazemos [...] ultrapassam, assim, largamente o alcance da autoanálise. Talvez seja por isso […] que o comportamento tem sido tão frequentemente atribuído a um ato de vontade que o desencadeia, produz ou cria.
B. F. Skinner, Recent Issues in the Analysis of Behavior, Columbus,
Merrill Publishing Company, 1989, p. 15 (adaptado)
De acordo com o texto,
(A) temos livre-arbítrio, porque o nosso comportamento tem origem num ato criativo da vontade.
(B) podemos inferir que temos livre-arbítrio, ainda que as pistas observáveis sejam poucas.
(C) pensamos ter livre-arbítrio, porque a nossa capacidade de autoanálise é limitada.
(D) os estudos experimentais permitem concluir que o livre-arbítrio molda o nosso comportamento.»
CRÍTICA NOSSA: em primeiro lugar o texto de Skinner não fala em livre-arbítrio, faculdade que inclui discernimento racional e deliberação, mas em vontade, que é uma coisa diferente. Um cão tem vontade de comer um osso mas não usa livre-arbítrio para esse acto. Logo, as quatro hipóteses estão erradas ao abordarem o livre-arbítrio.
Mas admitindo que Skinner se referisse ao acto de vontade como um acto de livre-arbítrio haveria duas respostas certas a B e a C: são praticamente indistinguíveis uma da outra.
4. Considere o argumento seguinte.
Todos os homens são imortais.
Sócrates é homem.
Logo, Sócrates é imortal.
Este argumento não é sólido porque
(A) a conclusão não se segue das premissas.
(B) é reconhecidamente falso.
(C) uma das premissas é falsa.
(D) o número de premissas é insuficiente.
CRÍTICA NOSSA: há duas respostas correctas, a B e a C. De facto é um raciocínio reconhecidamente falso , no qual a permissa maior é falsa.
5. Kuhn considera que, nos períodos de ciência normal,
(A) o progresso científico é inexistente.
(B) os cientistas aderem a diferentes paradigmas.
(C) as anomalias do paradigma são resolvidas.
(D) o progresso da ciência é cumulativo.
CRÍTICA NOSSA: Há duas respostas certas, a C e a D. As anomalias do paradigma normal, isto é, oficialmente instituído, vão sendo resolvidas e o progresso da ciência, cumulativo, dá-se dentro de certos limites sem que o paradigma mude. .
7. Em Uma Teoria da Justiça, Rawls defende que
(A) a justiça é independente da distribuição da riqueza, mas não da liberdade.
(B) a justiça consiste apenas em todos terem idênticas oportunidades e expectativas.
(C) as distribuições desiguais da riqueza são proibidas pelo princípio da diferença.
(D) o princípio da liberdade tem prioridade sobre os outros princípios da justiça.
CRÍTICA NOSSA: Há duas respostas certas, a B e a D. Rawls escreveu sobre os dois princípios da justiça escolhidos na posição original:
«Primeiro Princípio
«Cada pessoa deve ter um direito igual ao mais extenso sistema de liberdades básicas iguais que seja compatível com um sistema semelhante de liberdade para todos.»
(John Rawls, Uma teoria da justiça, Editorial Presença, pag 239).
Sem dúvida, a liberdade tem prioridade sobre a igualdade na distribuição da riqueza, de outro modo Rawls seria comunista, anarquista colectivista ou socialista radical, ora Rawls defendeu o capitalismo social. A hipótese D está certa. Mas a hipótese B também está correcta pois para Rawls a justiça consistia não no igualitarismo de salários e bens materiais mas na igualdade de oportunidades e expectativas: por exemplo, o filho do capitalista e o filho do operário pobre devem dispor de iguais oportunidades de acesso à universidade - o que implica atribuir bolsas de estudo ao filho do operário e não ao do capitalista.
GRUPO IV
3. Atente no problema apresentado no caso seguinte.
Circulam já alguns automóveis autónomos, ou seja, capazes de se conduzirem a si próprios.As empresas envolvidas na produção de automóveis autónomos têm feito grandes progressos,e os problemas tecnológicos levantados pela exigência de autonomia estão quase resolvidos.Subsiste, todavia, um problema ético: os automóveis autónomos podem ser programados para, em caso de acidente iminente, darem prioridade à segurança dos seus passageiros ou, em alternativa, darem prioridade à minimização do número total de vítimas.
Qual das duas programações referidas seria adotada por um defensor da ética de Mill?»
Justifique.
CRÍTICA NOSSA: A questão está mal elaborada pois não coloca alternativa nenhuma: «em caso de acidente iminente, darem prioridade à segurança dos seus passageiros ou, em alternativa, darem prioridade à minimização do número total de vítimas» é exactamente o mesmo, dito de duas maneiras gramaticalmente distintas. A ética de Mill aplica-se indistintamente «às duas» situações porque o princípio da maximização do prazer implica dar a felicidade à maioria - o que parece traduzir-se na «minimização do total de vítimas» - mas também dar a felicidade a todos quando tal é possível - neste caso dar segurança a todos os passageiros.
Esta questão revela o pensamento confuso de quem já não deveria estar na equipa de elaboração de exames de filosofia mas está por inércia do sistema.
(CONTINUA)
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