Quarta-feira, 27 de Julho de 2011
Questionar Quintanilla: o conceptualismo nega que as ideias abstractas existam fora da consciência?

 

No seu «Breve diccionario filosófico», escreveu Miguel Angel Quintanilla:

 

«Para evitar estos problemas, se puede formular el materialismo filosófico de manera que no dependa del concepto físico de materia. Lenin, por ejemplo, defendió en su obra Materialismo y empiriocriticismo que la única propiedad filosóficamente relevante de la materia era su existencia independiente de la conciencia. Sin embargo, de acuerdo con este criterio, el platonismo, que defiende la existencia objetiva de las ideas abstractas, seria compatible com el materialismo. Para evitarlo, hay que evitar la tesis del conceptualismo (las ideas abstractas no tienen una existencia objectiva independiente de la conciencia) y la del monismo o reduccionismo psicológico (la actividad de la conciencia se reduce a la actividad de las neuronas, componentes materiales del cérebro).» (Miguel Angel Quintanilla, Breve diccionario filosofico, Editorial Verbo divino, Pamplona, pag 182-183; a letra a negrito é posta por mim).

 

Alguma confusão se gera ao ler este  pensamento de Miguel Angel Quintanilla. O platonismo defende um mundo de ideias ou formas puras (o Bem, O Belo, o Triângulo, a Esfera, etc) independente da matéria que, inicialmente, estava no caos. Não pode ser materialismo porque este coloca a matéria como fonte primordial do universo e o espírito como um derivado desta. Mas se por materialismo se entender realismo, isto é, doutrina que afirma que as coisas materiais são independentes das consciências humanas, faz sentido o que Quintanilla escreveu acima, ou seja o platonismo ´comportaria realismo/"materialismo"  já que o terceiro mundo ou mundo do Outro ou da matéria subsiste independentemente da alma humana e coexiste com o primeiro mundo ou mundo dos arquétipos.

 

Quanto à definição de conceptualismo dada por Quintanilla, não parece coincidir com a definição dada por Pedro Abelardo que é rotulado de «conceptualista» nos dicionários de filosofia.

 

Ademais, existe conceptualismo realista - os conceitos existem fora da consciência humana, como é o caso da doutrina de Hegel, em que uma montanha e uma árvore são conceitos da Ideia Absoluta transcendente ao homem - e conceptualismo idealista, distinção de que Quintanilla e a generalidade dos catedráticos de filosofia parecem não se dar conta.

 

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Segunda-feira, 25 de Julho de 2011
Quintanilla: uma ambígua definição de materialismo

 

No seu «Breve diccionario filosófico» escreveu Miguel Angel Quintanilla:

 

«1- La Ontologia materialista.

La tesis principal del materialismo afirma que una cosa es real si, y solamente si, es material. Se trata pues de una teoría que pertenece al campo de la ontología general. La dificultad del materialismo radica en definir el concepto de materia de forma independiente del concepto de realidad» (Miguel Angel Quintanilla, Breve diccionario filosofico, Editorial Verbo divino, Pamplona, pag 182).

 

Esta é uma definição ambígua, redutora. O materialismo afirma que o espírito é real, resulta da matéria densa, dotada de massa,  possui alguma autonomia face a esta  e desaparece com a transformação desta em matéria inerte. A definição que Quintanilla dá refere-se a materialismo eliminativista - o materialismo que elimina, nega a realidade do espírito - e não a materialismo em geral. Para o materialismo a matéria é a fonte geradora do universo e o espírito uma transitória emanação dela. Os deuses ou as almas humanas até podem existir durante algum tempo, na visão materialista, se forem mortais, isto é, formas subtis de matéria sem autonomia face às leis da matéria física. Deuses geradores da matéria, almas imortais são teses rejeitadas pelo materialismo. As ideias são reais para o materialismo e não são matéria propriamente dita mas reflexos da matéria- se quisermos, são matéria muito subtil liberta das leis da gravidade e do carácter de impenetrabilidade corporal.

 

Por outro lado, não há, para o materialismo, qualquer dificuldade em definir o conceito de matéria de modo independente da realidade, ao contrário do que sustenta Quintanilla. Conceitos são conceitos forjados pela mente e a noção da realidade é dada, antes de mais, através do tacto, da visão, da audição, do sabor que são orgãos dos sentidos e, quando em acto, percepções empíricas distintas dos conceitos.

 


 

 

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Quarta-feira, 20 de Julho de 2011
Tudo é matéria, física, infra-física ou supra-física

 

Desenvolvo aqui uma ideia que me ocorreu há meses e me parece algo inovadora na história da filosofia (será?): o ser é matéria, se por matéria se entende o conteúdo indeterminado de algo. Como os dois princípios fundamentais de todos os entes são forma e matéria, isto é, essência/determinação e ser/indeterminação até o próprio Deus tem uma forma e uma matéria: a matéria será o pensamento-sentimento e a forma o sistema de arquétipos e raciocínios que constituem o próprio ente divino.

 

Aristóteles considera o ser como um predicado. Mas uma matéria não é um predicado: é um substante universal (note-se que o substante universal é a argamassa da qual se formam as substâncias, ousíai, isto é as essências individuadas).

 

Nesta perspectiva, a hylé ou matéria-prima universal indeterminada que dá origem ao fogo, água, terra, ar, hylé que para Aristóteles é não-ser , em sentido relativo, - é ser, substrato de tudo, sujeito. Mas o ser que Aristóteles coloca como predicado é substante "por cima"  isto é, superestrato ou no meio, mesoestrato. Todas as coisas são, isto é existem. Existir é uma matéria subtil - que pode ser espírito, vida, luz, electromagnetismo, energia - ou uma matéria visível, densa e palpável, como a matéria física. O existir não é, portanto, algo separado da matéria física ou da forma. Até os erros existem no mundo da imaginação, esse oceano de plasticidade que ora comunica com o mundo real ora com os mundos irreais e absurdos que são os mundos da matéria inteligível no caos.

 

Aristóteles usou magnificamente os termos matéria inteligível e matéria sensível. Em vez de matéria inteligível poderia escrever ser inteligível. Ser é matéria, isto é, a textura indeterminada de qualquer coisa espiritual, vital, energética, física.

 

Uma outra questão é a da génese dos objectos a partir da matéria prima universal no aristotelismo: se esta é potência pura, isso significa que é uma espécie de matéria inteligível que não tem concreção, está fora da phisis (natureza biofísica móvel) . Seria a forma que lhe daria concreção. Mas isso não faz muito sentido: a meu ver, a forma não confere carácter ontológico mas apenas eidológico. A matéria prima, na minha perspectiva, não está no nada mas constitui uma espécie de ganga no caos da qual as formas extraem objectos ao plasmarem-se nela. A matéria-prima não pode estar em potência de modo absoluto - se assim fosse, era a criação ex nihil (a partir do nada) que repugna ao espírito grego. A matéria-prima está em acto enquanto algo informe que tem massa, densidade, impenetrabilidade. Aristóteles não afirma isto mas, a meu ver, a lógica seria essa. Não deve ser a forma a puxar ou explicitar as propriedades da matéria. Esta já tem de ser um em si que se entrecruza com outro em si, hierarquicamente superior: a forma. A forma limita-se a configurar uma matéria física já existente.

 

O equívoco na filosofia de Aristóteles é não considerar o ser como a verdadeira matéria universal - o substracto, mesoestrato e superestrato - absolutamente indeterminada, que origina a hylé e tudo o mais. No entanto, Aristóteles chega a formular a ideia de que o género - grupo mais vasto e sem forma perfeitamente definida - está para a espécie como a matéria está para a forma. Mas, ao que parece, não formulou a ideia do ser como matéria universal que estaria para os diferentes géneros como a matéria está para a forma, talvez por recear que o "ser" (predicado)  e a "hylé" (sujeito, substracto) se confundissem. De facto, a hylé é uma espécie dentro do género universal ser: é o ser material informe, inexistente segundo Aristóteles, existente em minha opinião, como matéria no caos.

 

A matéria, em sentido universal, expande, estende-se em campos infimitos e a forma, ao contrário, segmenta, corta em fatias e contrai. Logo o ser é essa matéria e não surpreende a máxima da escola eleática de que «tudo está cheio de ser.»

 

 

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Domingo, 10 de Julho de 2011
George Berkeley e David Hume: a mesma ideia de substância material como percepção ou ideia, o mesmo idealismo

 

David Hume (7 de Maio de 1711- 25 de Agosto de 1776) perfilhou o mesmo idealismo imaterialista que George Berkeley (12  de Março de 1685-14 de Janeiro de 1753) e não disfarçou a sua admiração por John Locke (29 de Agosto de 1632- 28 de Outubro de 1704, empirista e associacionista, referindo-se a este último como «grande filósofo»: 

 

« Levantou-se um problema muito importante com relação às ideias abstractas ou gerais, a saber, se elas são gerais ou particulares quando a mente as concebe. Um grande filósofo contestou a opinião estabelecida sobre este assunto e afirmou que todas as ideias gerais não são senão ideias particulares adstritas a um certo termo que lhes dá significado mais extenso e faz que evoquem outros indivíduos a elas semelhantes.» (David Hume, Tratado da Natureza Humana, pag 46, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa; o negrito é da minha autoria).

 

Sobre a substância, em particular como matéria exterior ao corpo humano e independente de nós, Hume escreveu:

 

«Mas creio que ninguém afirmará que a substância é uma cor, um som, ou um sabor. A ideia de substância deve portanto provir de uma impressão de reflexão, se ela na realidade existe. Ora as impressões de reflexão reduzem-se às nossas paixões e emoções, nenhuma das quais com certeza pode representar uma substância. Portanto não temos uma ideia de substância distinta da de uma colecção de substâncias particulares, nem queremos dizer outra coisa quando falamos ou raciocinamos sobre ela.»

«A ideia de substância, assim como a de modo, não é senão uma colecção de ideias simples unidas pela imaginação, às quais se deu um nome determinado, que nos permite evocar, quer para nós próprios, quer para os outros, essa colecção.» (David Hume, ibid, pag. 45).

 

Comparado com o de David Hume, o pensamento de Berkeley limita-se a acrescentar Deus, o Autor da natureza, à tese de que os objectos materiais são percepções (impressões sensoriais) ou ideias no espírito humano:

 

«As ideias impressas nos sentidos pelo Autor da natureza chamam-se objectos reais; e as excitadas na imaginação, por menos regulares, vivas e constantes, designam-se mais propriamente por ideias ou imagens de coisas que copiam ou representam. Mas as nossas sensações embora nunca fossem vivas e claras são no entanto ideias, isto é, existem no espírito ou são por ele percebidas como as que ele mesmo forma. Às ideias dos sentidos atribui-se realidade maior, por mais fortes, ordenadas e coerentes do que as criadas pelo espírito; isso não prova que existam fora de ele. São também menos dependentes do espírito ou substância pensante que as percebe porque as provoca a vontade de um espírito mais poderoso; mas são ideias e nenhuma ideia forte ou fraca pode existir senão no espírito que a percebe.» (Berkeley, Tratado do conhecimento humano, pags 36-37, Atlântida; o negrito é de minha autoria).

 

 

Berkeley diz, basicamente, o mesmo que Hume: os objectos materiais fora do nosso corpo ( as casas, as montanhas, o céu com nuvens, etc) são apenas percepções ou um misto de percepções e ideias nossas, sempre alojados na esfera do nosso espírito que transcende o corpo. A cadeira e a mesa que vejo são percepções trabalhadas pela imaginação que as coloca fora do meu corpo, mas não existem fora do meu espírito. E Kant diz, essencialmente, o mesmo, recorrendo a conceitos como formas a priori da sensibilidade e do entendimento, fenómeno, númeno, apercepção transcendental pura, etc.

 

O mais surpreendente é que os Dicionários de Filosofia e os tratados de gnosiologia, que é como quem diz, as cátedras universitárias em geral classificam Hume de fenomenista, de empirista radical... mas não de idealista. O artigo sobre Hume do "Dicionário Oxford de Filosofia" de Simon Blackburn não classifica uma única vez de idealista o filósofo escocês:

 

«Hume foi o primeiro empirista moderno a recusar a ajuda quer dos princípios a priori do raciocínio, quer de qualquer outra ideologia que garanta a harmonia entre as nossas percepções e o mundo.» (Simon Blackburn, Dicionário de Filosofia, pag 210, Gradiva).

 

Mas empirista não se opõe a idealista, como idealismo se opõe a realismo. Empirismo e idealismo são espécies de géneros diferentes. Há empiristas idealistas e racionalistas idealistas. Há empiristas realistas e racionalistas realistas.

 

 

Se a ontognoseologia de Berkeley é, basicamente, a mesma que a de David Hume, por que razão atacou Kant o primeiro e não o segundo? Talvez por Berkeley sustentar, dogmaticamente, a existência de Deus e Hume não. E talvez porque foi lendo Hume que Kant se apercebeu da inexistência de determinismo rigoroso na natureza. E o ataque de Kant a Berkeley foi falacioso:

 

« O idealismo (o idealismo material, entenda-se) é a teoria que considera a existência dos objectos fora de nós, no espaço, ou simplesmente duvidosa e indemonstrável, ou falsa e impossível; o primeiro é o idealismo problemático de Descartes, que só admite como indubitável uma única afirmação empírica (assertio), a saber, eu sou; o segundo é o idealismo dogmático de Berkeley, que considera impossível em si o espaço, com todas as coisas de que é condição inseparável, sendo, por conseguinte, simples ficções as coisas no espaço. (..) Mas o fundamento deste idealismo foi por nós demolido na estética transcendental.» (Immanuel Kant, Crítica da Razão Pura, pag 243, Fundação Calouste Gulbenkian; o negrito é posto por mim).

 

Veja-se a posição de Kant, que sustenta a irrealidade do espaço, posição igual à de Berkeley que ele tão veementemente condena:

 

«Afirmamos pois a realidade empírica do espaço (no que se refere a toda a experiência exterior possível) e, não obstante, a sua idealidade transcendental, ou seja, que o espaço nada é, se abandonarmos a condição de possibilidade de toda a experiência e o considerarmos com algo que sirva de fundamento das coisas em si.» (Immanuel Kant, ibid, paginas 68-69).

 

"Realidade empírica" do espaço significa realidade aparente do espaço: nós vemos o espaço como algo situado fora do nosso corpo, mas esse "fora" é uma projecção subjectiva do nosso eu. O espaço, em si, é impossível tanto para Kant como para Berkeley. O ataque de Kant a Berkeley é uma série de paralogismos, de raciocínios errados, baseados na ambiguidade da terminologia kantiana. Para Kant, se a mente do sujeito se extiguisse, o espaço desapareceria porque é um cenário irreal de aparência objectiva. E para Berkeley, sucede o mesmo.

 

 

  

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Terça-feira, 5 de Julho de 2011
Sobre "O Ente e a Essência": ambiguidades em São Tomás e em Santiago de Carvalho

 

Com prefácio do catedrático medievalista Mário Santiago de Carvalho, a Contraponto editou em 1995 "O ente e a essência"  de São Tomás de Aquino. Servi-me dessa edição para leccionar a estudantes alentejanos uma parte do já "desaparecido", na minha escola, programa de Filosofia do 12º ano do ensino secundário em Portugal, que incluía a escolha de três entre vinte obras conceituadas de filosofia. Tanto o texto original de São Tomás como o prefácio de Mário Santiago de Carvalho padecem de imprecisões teóricas, algumas das quais passo a explanar.

 

O ARISTOTELISMO NÃO É ESSENCIALISMO?

 

Em prefácio de uma edição portuguesa de "O Ente e a Essência" de São Tomás de Aquino escreveu Mário Santiago de Carvalho:

 

« Como se insistiu, este é um mérito de Tomás de Aquino, e ele terá consistido em servir-se com rigor da lógica, elucidando-a e pondo-a ao serviço das tarefas da ontologia Este é portanto um aspecto que não quereríamos desvalorizar , pois é, de facto, a linguagem da lógica, o aristotelismo, com o avicenismo e o essencialismo, que galvanizam este texto. » (Mário Santiago de Carvalho in prefácio de "O Ente e a essência" , pag 61, Contraponto, Porto).

 

Que significa para Mário Santiago o termo essencialismo? Tudo leva a crer que significa platonismo, pois separa aristotelismo de essencialismo. Trata-se de um equívoco: o aristotelismo é um essencialismo, uma vez que nele as essências antecedem a existência das coisas materiais, tal como em Platão.

 

A AMBÍGUA DISTINÇÃO ENTRE ESPÉCIE E "NATUREZA HUMANA"

 

São Tomás, enquanto fiel a Aristóteles, distinguiu entre a essência em si mesma (segundo a sua absoluta consideração) e a essência individuada (segundo o ser que possui em cada indivíduo):

 

«Mas a natureza ou essência assim compreendida pode ser considerada de dois modos. Do primeiro modo, segundo a sua noção própria, que é a sua absoluta consideração. (...) Por exemplo, ao homem enquanto homem, corresponde-lhe "racional" e "animal" e outros predicados que entram na definição; mas ser branco ou negro, ou qualquer outra coisa semelhante que não pertença à noção de "humanidade" não corresponde ao homem enquanto homem». (...)

 

«Do segundo modo considera-se (a essência)  segundo o ser que possui neste ou naquele indivíduo. Neste caso, pode atribuir-se-lhe algo por acidente, em razão daquilo em que se encontra. Por exemplo, diz-se que o homem é branco, porque Sócrates é branco, embora isso não pertença ao homem enquanto homem.» (São Tomás de Aquino, "O Ente e a Essência", pag 82-83)

 

«Compete pois à "natureza humana", segundo a sua consideração absoluta, ser atribuída a Sócrates. A noção  de espécie, por sua vez, não lhe compete segundo a sua absoluta consideração, mas deriva de acidentes que a acompanham segundo o ser que possui no intelecto. Por esse motivo, o termo de espécie não é atribuído a Sócrates, como se se dissesse "Sócrates é espécie". Mas isso teria necessariamente de suceder, se a noção de espécie conviesse ao homem segundo o ser que tem em Sócrates, ou segundo a sua absoluta consideração, quer dizer enquanto é homem.» (Tomás de Aquino, ibid, pag 85).

 

Se a "natureza humana", que é o mesmo que a essência homem, como .São Tomás diz no início do livro, convém ao indivíduo Sócrates, porque razão "espécie ´não poderia ser atribuída a homem? É óbvio que, no sentido da extensão, da quantidade dos indivíduos que a integram, Sócrates não é a (toda a) espécie humana, e neste sentido, espécie não lhe convém. Mas do ponto de vista da essência, da forma comum à espécie, esta convém a Sócrates a ponto de se poder dizer: "Sócrates é uma incarnação ou exemplificação da espécie humana" . Aristóteles identificou bem a essência com a espécie (eidos) .O texto de Aquino acima tem falta de clareza.

 

O ABSOLUTO É EXTERIOR AO SINGULAR E AO UNIVERSAL? A ESSÊNCIA É MÚLTIPLA NA ALMA?

 

Referindo-se aos dois modos de considerar a essência teorizados por São Tomás, escreveu Mário Santiago de Carvalho:

 

«A consideração absoluta é evidentemente o ideal da ciência, o índice de que é genuinamente científica a linguagem que fazemos. (...) Sempre que possível, o ontólogo deve privilegiar este plano que não é singular nem universal, mas é absoluto

«No segundo modo, a natureza ou essência já não se considera na sua significação, mas na sua realização. Encontramo-nos a um nível menos abstracto. Neste segundo plano acontece aquilo que se recusava ao primeiro. Se, neste, a essência não podia ser una nem múltipla, já no segundo caso é isso que acontece, ela é múltipla na alma (qualquer conceito é universal) e é una na realidade (os unissingulares)». (Mário Santiago de Carvalho, in introdução de "O Ente e a Essência", pag 36; o negrito é de minha autoria).

 

 

Por que razão o plano da essência na sua consideração absoluta (exemplo: "o homem enquanto homem") «não é singular, nem universal, mas absoluto», segundo Santiagpo de Carvalho?

Há uma confusão antidialéctica de níveis neste pensamento de Mário Santiago. O absoluto engloba o singular, o particular (no sentido de parte, regional, grupo de entes da mesma espécie) e o universal. Absoluto não se opõe a singular e universal mas  sim a relativo: há um singular absoluto e um universal absoluto, um singular relativo e um universal relativo.

 

Mário Santiago de Carvalho afirma que no caso do seu modo da consideração absoluta «a essência não poderia ser una nem múltipla». Mas sustentar isto é violar o princípio do terceiro excluído: ou as coisas são unas ou não unas, isto é, são múltiplas. Há coisas que são unas e múltiplas em simultâneo, segundo a perspectiva. A essência é sempre una. A essência "cavalo" no seu modo de consideração absoluta - o cavalo enquanto cavalo - é única em todas as mentes humanas: um quadrúpede, mamífero hipomorfo, da ordem dos ungulados, com crinas, veloz, uma das três sub-espécies da espécie Equus Ferus.

Como pode Mário Santiago asseverar que a essência não é una? É um paralogismo.

 

E afirma ainda que a essência no modo que tem em cada singular "é múltipla na alma (qualquer conceito é universal) e una na realidade (os unissingulares).» Grande nuvem de confusão aqui paira!  A essência de Sócrates, que é a essência homem individuada em Sócrates, é una na alma (na percepção, no pensamento) e não múltipla. Podemos admitir que diferentes pessoas conceptualizem Sócrates de modo diferente - e aqui entra a multiplicidade - mas cada uma delas o conceptualiza de forma una.

 

Quando Santiago de Carvalho diz que «qualquer conceito é universal» equivoca-se no que toca à filosofia de Aristóteles: segundo este, as espécies não são conceitos universais mas sim comuns, isto é, «regionais», abrangendo comunidades sectoriais. Só o género e os universais supra-genéricos, como o ser, o uno, o semelhante, etc, são universais.

 

ARISTÓTELES NÃO CONCEBIA COMO UMA ESSÊNCIA CHEGA À EXISTÊNCIA?

 

Escreve ainda Mário Santiago de Carvalho, referindo-se à pretensa superioridade  do pensamento de Tomás de Aquino sobre o de Aristóteles:

 

«Podemos dizer, em resumo deste capítulo, o seguinte: ao substituir a teoria do hilomorfismo universal São Tomás pôs em relevo um tipo de composição muito particular, o da essência com a existência. (...) Considerada deste ponto de vista, à substância ou ao concreto como primeiro objecto da ontologia acresce uma consideração que Aristóteles não podia conceber (como é que uma essência chegou à existência? - como é que esta essência se mantém em existência?)» (Mário Santiago de Carvalho in Introdução de "O Ente e a Essência", pag 49: o negrito é posto por mim).

 

Ao contrário da tese que sustenta Mário Santiago de Carvalho de que o Estagirita grego não  concebia como é que as essências se mantinham em existência, Aristóteles concebia as essências como autosubsistentes, eternas, incriadas, acto, e, portanto, não se punha o problema de as essências chegarem à existência como o põe o cristianismo de São Tomás que identifica Deus com a existência pura, suporte das essências:

 

«As coisas eternas são, quanto à substância, anteriores às coisas corruptíveis e nada que esteja em potência é eterno. (...) O corruptível em sentido absoluto é o corruptível quanto à substância. Portanto, nenhuma das coisas que são incorruptíveis em sentido absoluto está em potência em sentido absoluto. (Nada impede que o esteja em algum aspecto, por exemplo, quanto à qualidade ou ao lugar.) Logo todas elas estão em acto. Tão pouco está em potência qualquer das coisas que são necessariamente. (Certamente, estas são as realidades primeiras; e, desde logo, se elas não existissem, não existiria nada.)» (Aristóteles, Metafísica, Livro IX, 1050 b, 15-20)

 

Este texto é muito claro: as essência, por exemplo a essência cavalo ou a essência árvore são incorruptíveis, anteriores aos cavalos e às nuvens físicas, e estão em acto. Isto é platonismo. Essas essências, actos em si mesmas, estão em potência para os cavalos e nuvens que se gerarem, materialmente, no futuro próximo ou longínquo. 

 

 

O mundo em Aristóteles, é eterno e incriado. Tanto quanto me é dado perceber, o cosmos apenas passou do repouso ao movimento dos astros e esferas celestes quando os planetas e estrelas contemplaram Deus, o pensamento puro e imóvel, e desejaram alcançá-lo pondo-se a rodar. As essências eternas - Sol, Lua, Vénus, Júpiter, esferas celestes, árvore, montanha, homem, cavalo, etc - não foram criadas por Deus, como sustentavam São Tomás e os teólogos cristãos, coexistem desde a eternidade com o próprio Deus, não recebem deste a existência.

O problema da essência (to ti en einai) e da existência (einai, to ón) já está colocado por Aristóteles, não é um tema que principiasse com São Tomás de Aquino. A essência eterna, forma pura, já possui existência, uma existência imaterial.

 

A INTENÇÃO (INTENTIO) É UM CONHECIMENTO DE MÉDIA DIMENSÃO?

 

Sobre a intenção (intentio), noção existente na filosofia do Aquinate e em outras da escolástica, escreveu Mário Santiago de Carvalho:

 

«Examinando mais atentamente o que isto quer dizer,  verifica-se que entre a singularidade individual (cada um dos homens) e a universalidade (o conceito, que enuncia o que há de comum aos homens) há um modo de ser próprio, intermediário, que é o modo de ser de uma determinada natureza na inteligência. O modo de ser na inteligência (i.e. o modo como se concebe uma dada realidade) partilha de ambas as notas. Ele é universal (porque se aplica uniformente aos vários indivíduos da mesma espécie) e particular (porque é apenas e sempre a representação mental do indivíduo que num certo momento pensa,»

«É este modo de ser intermediário (a que se dá o nome de "intencional") com as suas notas, que mais nos deve ocupar...» (Mário Santiago de Carvalho, Introdução a "O ente e a essência", pag 37, Contraponto; o negrito é colocado por mim). 

 

 

A intentio é a percepção empírica, o dado fenoménico, ou o conceito, isto é a ligação entre o cérebro/ inteligência ou orgão sensorial e os objectos físicos exteriores,que pode ou não exprimir integralmente o ser dos objectos exteriores. Guilherme de Ockham escreveu:

 

«É pois, a saber, que se chama intenção da alma algo que há nela apto para significar outra coisa (...)assim as palavras são signos secundários daquelas coisas das quais são signos primários as intenções da alma. Isso que há na alma, e que é signo da coisa, e do qual se compõe a proposição mental ao modo como a proposição oral se compõe de palavras, se chama algumas vezes intenção da alma; outras, conceito da alma; outras, paixão da alma; outras, semelhança da coisa..» (Ockham, Suma de la lógica in Los filósofos medievales, selección de textos, de Clemente Fernandez, pag 1074, Biblioteca de Autores Cristianos; o negrito é por mim colocado)

 

Daqui se conclui apenas que a intentio é posicionalmente um intermédio entre o mundo físico exterior e a consciência vazia ou parcialmente vazia do indivíduo. Mas não se pode dizer que a intentio é, por natureza, um intermédio no plano gnosiológico, um conhecimento misto de singular e universal, como sustenta Santiago de Carvalho no texto acima. Os números um, dois, três e quatro são intenções e constituem conceitos universais que se aplicam a biliões de singulares. Em si o conceito de dois não é singular: é um universal, aplicável universalmente a casos singulares.

 

A ESSÊNCIA DE HOMEM E A DE SÓCRATES DIFEREM SÓ NA QUESTÃO DO LIMITADO/ILIMITADO? OU TAMBÉM NO QUID DA FORMA?

 

 

Por matéria delimitada, São Tomás de Aquino entende a matéria concreta, tridimensional, com dimensões corporais definidas. Por exemplo: este homem de 189 centímetros de altura, aquela casa de 120 metros quadrados de área coberta. Escreveu o Aquinate:

 

 

«Por esta razão, deve saber-se que o princípio de individuação não é a matéria considerada de qualquer modo mas unicamente a matéria delimitada. Chamo "matéria delimitada" à que se considera submetida a dimensões determinadas. Ora esta matéria não entra na definição de homem, mas entraria na definição de Sócrates, se Sócrates tivesse definição. Na definição de homem, ao contrário, entra a matéria não-delimitada. Na definição de homem, não se põem estes ossos e esta carne, mas os ossos e a carne tomados em abstracto, que constituem a matéria não-delimitada do homem. É evidente, por conseguinte, que a essência de homem e a essência de Sócrates não diferem senão quanto ao "delimitado" e ao "não-delimitado" ». (Tomás de Aquino, O Ente e a Essência, pag 75, Contraponto; o negrito é posto por mim).

 

O equívoco de São Tomás é considerar o delimitado como a diferença entre a essência Sócrates com a essência homem que não tem limites mas apenas a proporção entre as diferentes partes. Mas falta uma diferença essencial que reside no "quid" de cada uma das essências, a individual e a específica: a forma de Sócrates, calvo, nariz achatado, lábios grossos difere da forma homem como espécie - homem não calvo, nariz correcto, etc. É, pois, a disparidade entre duas formas, a que envolve a matéria de cada corpo e a que paira como espécie. 

 

A FORMA É RECIBIDA NA MATÉRIA DELIMITADA?

 

 

Depois de se referir a duas modalidades de essências - a de Deus, que é apenas existir puro, e a das inteligências separadas, que são forma e existência - São Tomás escreve:

 

 

«Na terceira modalidade, a essência encontra-se nas substâncias compostas de matéria e de forma, nas quais o existir é igualmente recebido e finito, já que recebem o existir a partir de outro. Além disso a sua natureza ou quididade é recebida na matéria delimitada. Por esse motivo são finitas, quer pela parte superior quer pela inferior.» (Tomás de Aquino, O ente e a essência, pag 96, Contraponto; o negrito é posto por mim).

 

Neste texto há um erro de São Tomás: originalmente, e na natureza, a forma não é, em regra, recebida na matéria delimitada mas sim na matéria não delimitada, delimitando ou confinando uma porção desta. Pois a matéria só se torna delimitada, isto é, condensada, sujeita a dimensões singulares e concretas, ao receber a forma específica. As árvores nasceram quando a forma árvore se uniu à matéria-prima indeterminada, infinita, não delimitada (hylé). É óbvio que o oleiro faz o vaso imprimindo a forma numa matéria delimitada: uma certa porção de barro. Mas aqui trata-se da arte humana de produzir e não da génese originária na natureza.

 

 

 

A CONTRADIÇÃO DE ARISTÓTELES PATENTE EM SÃO TOMÁS: A ESSÊNCIA SÓ EXISTE NAS COISAS SINGULARES MAS TEM DE EXISTIR PREVIAMENTE  ÀPARTE COMO FORMA ETERNA

 

Toda a "Metafísica" de Aristóteles gira em torno de um eixo dinâmico: um essencialismo ( "as formas ou essências são eternas e preexistem aos objectos materiais" e nisto é igual a Platão) que se procura converter em existencialismo (" as formas essenciais não existem fora dos objectos materiais, fora da existência material" e aqui opõe-se a Platão) mas não tem como fazê-lo, senão mediante uma certa incoerência

 

Aristóteles é um platónico envergonhado. Critica a existência das formas platónicas mas ele mesmo é levado a admitir que as formas são eternas e têm de subsistir por si, fora da matéria. Mário Santiago de Carvalho não dá conta de se ter apercebido desta inconsistência do aristotelismo na introdução à edição que traduziu para português. Neste excerto da "Metafísica" Aristóteles admite que há formas eternas não geradas, ou seja, formas fora da matéria, tal como Platão postulava, e em seguida afirma que não existe a essência esfera fora das esferas materiais (de bronze, pedra, etc) nem a forma casa fora das casas plasmadas na matéria:

 

«Assim pois, é evidente por aquilo que foi dito que não se gera o que se denomina forma ou substância, enquanto que o composto que se denomina segundo esta gera-se, sim, e que em todo o gerado há matéria, e um é isto, e outro é aquilo.»

«Mas existe acaso uma esfera fora de estas ou uma casa fora dos tijolos? A ser assim, não ocorreria que não se geraria nenhum objecto determinado? (...) Assim, pois, é evidente que se existem realidades fora dos indivíduos, tal como alguns costumam falar das Formas, a causalidade das Formas não terá utilidade nenhuma para explicar as gerações e as substâncias.»  (Aristóteles, Metafísica, Livro VII, 1033 b, 15-30).

 

São Tomás cai na mesma incoerência inerente ao aristotelismo:

 

« De maneira semelhante, também não se pode dizer que as noções de género ou de espécie correspondam à essência, enquanto que esta é uma realidade fora das coisas singulares. como afirmavam os PLATÓNICOS» ( Tomás de Aquino, O ente e a essência, pag 82; o negrito é posto por mim).

 

Neste excerto acima, o Aquinate nega que a essência exista fora do objecto singular.

Compare-se agora com o excerto seguinte em que o filósofo dominicano afirma que a essência está fora do objecto singular e fora da alma, o que nega o nominalismo e o conceptualismo irrealista e afirma um realismo platonizante das essências:

 

«Com efeito, é falso dizer que a essência do homem, enquanto tal, tem o ser neste singular. Na verdade, se ser neste singular pertencesse ao homem enquanto é homem, nunca estaria fora deste singular. Paralelamente também, se pertencesse ao homem enquanto é homem não ser neste singular, nunca seria nele. A verdade porém está em dizer que o homem enquanto é homem, não tem que existir neste singular ou naquele, nem na alma.» (Tomás de Aquino, O ente e a essência, paginas 83-84, Contraponto; o negrito é posto por mim).

 

De duas uma: ou a essência «Homem» existe no colectivo de todos os homens e não em cada homem singular; ou existe, algures, aparte, para gerar cada homem ao unir-se à matéria-prima indeterminada (hylé).

 

A única diferença significativa entre Platão e Aristóteles, neste aspecto da cosmogénese, é que o primeiro introduz o demiurgo, um deus-operário, que imprime formas dos arquétipos na matéria e o segundo faz desaparecer, aparentemente, o demiurgo e confere às formas eternas mobilidade, autonomia, para se imprimirem na matéria, uma vez que o Deus aristotélico é imóvel e não intervém no mundo.

 

 

 

 

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Domingo, 3 de Julho de 2011
"Diferença e repetição" de Gilles Deleuze: é a Diferença o centro e o Mesmo a circunferência do Eterno Retorno?

 

Na linha do racionalismo francês, com fina análise psicológica, Gilles Deleuze (18 de Janeiro de 1925- 4 de Novembro de 1995, o dia do assassínio do primeiro-ministro israelita Itzak Rabin) foi um pensador académico poderoso. Uma das suas ideias chave é a de que a Diferença se sobrepõe à Mesmidade/Identidade, embora andem de mãos dadas. Deleuze possui uma influência considerável de Leibniz - note-se que, em brincadeira cabalística, a imaginação sugere-nos que Giles De...Leuze poderia chamar-se Giles De..Leibniz.

 

Sabe-se que para Leibniz a mónada - um conceito retirado de Aristóteles: o ponto inespacial, que está em parte nenhuma - era a fonte primordial do universo. a mónada é uma unidade de força e movimento, tal como a Diferença que cria a intensidade e a profundidade, na teoria de Deleuze.

Leibniz, que me parece um vincado inspirador de Deleuze, escreveu sobre a mónada ou substância simples sem partes, hermeticamente fechada ao exterior:

 

«10. Dou também por concedido que todo o ser criado está sujeito à mudança e, por consequência, também a Mónada criada, e também que essa mudança é contínua em cada uma.» (Gottfried W. Leibniz, Monadologia)

 

Isto corresponde, na teoria de Deleuze, à Diferença, essa espécie de arquétipo em mutação incessante de intensidade, que cria a profundidade, o espaço, o tempo, o mundo dos fenómenos caracterizado por extensão e qualidade (qualitas) e corpos materiais (quales):

 

«No ser, a profundidade e a intensidade são o Mesmo - mas o mesmo que se diz da diferença. A profundidade é a intensidade do ser ou inversamente. E dessa profundidade intensiva, desse spatium, saem ao mesmo tempo, a extensia e o extensum, a qualitas e o quale.» (Gilles Deleuze, Diferença e Repetição, pag 375).

 

O CONCEITO DE DIFERENÇA, UM MISTO DE ARQUÉTIPO EM PLATÃO E MÓNADA EM LEIBNIZ

 

Sobre o conceito de Diferença, capital na sua filosofia., Deleuze escreveu:

 

«A diferença não é o diverso. O diverso é dado. Mas a diferença é aquilo pelo qual o dado é dado. É aquilo pelo qual o dado é dado como diverso. A diferença não é o fenómeno, mas o númeno mais próximo do fenómeno. É, portanto, verdade que Deus fez o mundo calculando, mas os seus cálculos nunca estão correctos; e é mesmo esta injustiça no resultado, esta irredutível desigualdade que forma a condição do mundo. O mundo «faz-se» enquanto Deus calcula; não haveria mundo se o cálculo fosse correcto. O mundo é sempre assimilável a um "resto" e o real no mundo só pode ser pensado em termos de números fraccionários ou mesmo incomensuráveis. Todo o fenómeno remete para uma desigualdade que o condiciona. Toda a diversidade e toda a mudança remetem para uma diferença que é a sua razão suficiente. Tudo o que se passa e aparece é correlativo de ordens de diferenças: diferença de nível, de temperatura, de pressão, de tensão, de potencial, diferença de intensidade.» (Gilles Deleuze, Diferença e Repetição, pag 361, Relógio d´Água; o negrito é colocado por mim).

 

Para Deleuze, a diferença é a forma principial dinâmica, por assim dizer, o arquétipo em movimento: enquanto que em Platão o arquétipo ou essência estática é reproduzido no mundo da matéria - é deficientemente clonado - por acção do demiurgo, que constitui a força dinâmica que plasma a essência na matéria, na chora ou espaço material caótico. Assim, a Diferença é como a mónada de Leibniz : originária, imune a influências exteriores, variando de intensidade porque em contínua transformação.

 

No entanto, neste texto acima a palavra diferença reveste-se de dois sentidos distintos, o que parece ter escapado a Deleuze: diferença como forma principial dinâmica (nas primeiras linhas do texto) e diferença como diversidade entre objectos e estados, como diversidade no interior do cosmos (nas últimas linhas do texto). No primeiro caso, a Diferença, como arquétipo-demiurgo, não é diferença em relação a algo, mas tem um estatuto ontológico primordial, em si: é princípio da diversidade.

 

Não parece ser esta a leitura que Fernando Gil faz no prefácio da edição portuguesa do "Diferença e repetição" de Deleuze.

 

A DIFERENÇA É O CENTRO DO PROCESSO DO ETERNO RETORNO E O MESMO SÓ ESTÁ NA CIRCUNFERÊNCIA?

 

Retomando o tema do eterno retorno, que é caro a Nietzschze e aos estóicos, Deleuze escreveu:

 

«O génio do eterno retorno não está na memória, mas no desperdício, no esquecimento tornado activo(...) Assim, a negação como consequência resulta da plena afirmação, consome tudo o que é negativo e consome-se a si próprio no centro móvel do eterno retorno. Se o eterno retorno é um círculo, é a Diferença que está no centro, estando o Mesmo apenas na circunferência - centro descentrado a cada instante, constantemente tortuoso, que gira apenas em torno do desigual

«A negação é a diferença mas a diferença vista do lado menor, de baixo.Invertida, vista de cima para baixo,  a diferença é a afirmação. Mas esta proposição tem muitos sentidos: que a diferença é objecto de afirmação; que a própria afirmação é múltipla; que ela é criação, mas também deve ser criada, afirmando a diferença, sendo a diferença em si mesma. Não é o negativo que é o motor...» (Gilles Deleuze, Diferença e repetição, pags 120-121, Relógio d´Água; o negrito é posto por mim).

 

Um dos problema que esta citação levanta é: se a Diferença gira em torno do Desigual - comparemos a Diferença ao sol que tudo ilumina e gira em torno de um centro, apesar de o Sol/Diferença ser o centro irradiante do universo  - como classificar a instância do Desigual? Como uma diferença formal, ontologicamente anterior à Diferença-Arquétipo-Mónada?

 

Há erros antidialécticos neste texto de Deleuze. Não é possível opor a Diferença ao Mesmo como o centro do círculo se opõe à circunferência. A Diferença em si é um Mesmo, porque tem consistência ontológica. Ela só é um Outro em relação a outra Diferença ou ao mundo dos fenómenos. 

 

Também ao afirmar que "a negação é a diferença... vista de baixo" está a atribuir à negação (uma predicação) o significado de  "diferença", isto é, diferença numa perspectiva de visão  ... da Diferença, como ser principial. É um uso anfibólico, falacioso, do termo "diferença", - diferença em si, ou seja, Forma-Energia, e diferença para outrém, ou seja, desigualdade (negação ou afirmação de algo). É, pois, a pura sofística no texto de Deleuze - escreve muito bem mas afasta-se, poeticamente, do rigor epistémico da descrição ontológica. Lembra "O sofista"  de Platão. E a mesma crítica se aplica à frase "invertida, vista de cima para baixo, a diferença é a afirmação".

 

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Sexta-feira, 1 de Julho de 2011
Aristóteles: ser um numericamente, especificamente, genericamente e analogicamente

 

A «Metafísica» de Aristóteles, fonte inesgotável de saber filosófico, encerra a seguinte passagem:

 

«Enfim, certas coisas são um numéricamente, outras especificamente, outras genericamente, e outras por analogia; numericamente são-no aquelas coisas cuja matéria é uma, especificamente são-no aquelas cuja definição é uma, genericamente aquela cuja figura de predicação é a mesma e, por fim, por analogia as que guardam entre si a mesma proporção que guardam entre si outras duas. Por outro lado, as modalidades posteriores acompanham sempre as anteriores; assim, as coisas que são um numericamente são-no também especificamente, mas nem todas as coisas que o são especificamente são-no também numericamente; por sua vez, todas as que o são especificamente são-no também genericamente, mas nem todas as que o são genericamente o são ademais especificamente, ainda que o são, sim, por analogia; por seu lado, nem todas as que o são por analogia o são também genericamente.» (Aristóteles, Metafísica, Livro V, 1036 b, 30-35, 1037 a  1-5; o negrito é posto por mim).

 

Quais são as coisas que são um, numericamente? São os indivíduos, considerados um a um. Cada indivíduo, integrado numa determinada espécie, é um e uno, porque a matéria só é uma e una em cada individuo. O coração de Sócrates não é um só com o de Cleoptara ou o de Platão porque são materialmente distintos entre si e estão alojados em corpos diferentes. Sócrates é um numericamente porque as suas partes, a cabeça, o tronco, as pernas, os braços, a alma são uma só coisa. Mas não é um especificamente nem genericamente porque não existem a espécie Sócrates nem o género Sócrates.

 

 

A frase "nem todas as (coisas) que o são genericamente o são ademais especificamente" não é inteiramente clara: o que Aristóteles pretendeu dizer, aparentemente, é que numa dada espécie, que é a parte, não cabe o género todo, isto é, as espécies que constituem o género. Exemplo: as galinhas são do género animal tal como os homens mas as galinhas, parte do género animal, não são a espécie homem. A frase de Aristóteles pode suscitar a equívoca interpretação de que há um resíduo do género que não comporta espécies quando, de facto, o género não é senão o conjunto das espécies que o integram. A mesma crítica se aplica à frase " nem todas as (coisas) que o são por analogia são-no também genericamente."

Resta notar que a analogia é uma aproximação ainda mais ténue e elevada do que o género.  Aristóteles não a define como uma forma una ou uma figura de predicação una (uma forma unida a uma «trans»-forma, o género) mas como uma semelhança de proporções entre dois pares de coisas ( exemplo: os pés estão para o homem, como as raízes estão para a árvore, é a mesma proporção). A espécie homem pertence ao género animal e a espécie árvore ao género vegetal mas ambos guardam entre si uma analogia de forma: os pés são análogos às raízes, as pernas e o tronco humano são análogos  ao tronco da árvore, os braços são análogos aos ramos da árvore. A analogia entre homem e árvore é acompanhada por uma unidade de género entre ambos: o género (ou supra-género) ser vivo.

 

Assim, tanto o nível inferior do numericamente - o da individuação - como o nível superior do analogicamente - o da dissolução dos géneros - são caracterizados, em forte tonalidade, pela marca do número, individuador de um ente singular ou de dois pares de coisas. É como se a zona central desta hierarquia - a espécie e o género - fosse essencialmente qualitativa e os extremos - o singular, a prote ousía; o universal, a analogia - fossem essencialmente quantitativos, números.

 

Pensar com Aristóteles é desenvolver, de facto, a nossa capacidade e erudição filosófica.

 

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