Samir Okasha, da Universidade de Bristol, equaciona de forma confusa a oposição realismo anti-realismo. À semelhança da generalidade dos catedráticos de filosofia de todo o mundo, não articula correctamente os princípios da não contradição ( em termos aristotélicos, deveria dizer-se: «da não contrariedade») e do terceiro excluído (que deveria, em termos aristotélicos, designar-se «da contradição»). Escreve Okasha:
«Há um debate antigo na filosofia entre duas escolas de pensamento opostas chamadas realismo e idealismo. O realismo sustenta que o mundo físico existe independentemente do pensamento e da percepção humana. O idealismo nega-o — afirma que o mundo físico é de algum modo dependente da atividade consciente dos seres humanos. A muitas pessoas, o realismo parece mais plausível do que o idealismo.
Pois o realismo se acomoda bem à perspectiva do senso comum de que os fatos sobre o mundo estão “lá fora” esperando ser descobertos por nós, ao passo que o idealismo não. » (Samir Okasha, da Universidade de Bristol, Realismo e Anti Realismo, extraído de Philosophy of Science: a Very Short Introduction, in Crítica na Rede).
Até aqui nada de especial a opor, a não ser que o autor não classifica o idealismo como uma modalidade do anti realismo. Isso já revela a sua confusão lógica que, no texto abaixo, se espelha nas águas da nitidez:
«Embora a disputa tradicional realismo/idealismo pertença a uma área da filosofia chamada metafísica, nada tem de particular, de fato, a ver com a ciência. O nosso interesse neste capítulo é por um debate mais recente que é especificamente sobre a ciência, e que de certo modo é análogo à disputa tradicional. O debate é entre uma posição conhecida como realismo científico e a sua oposta, conhecida como anti-realismo ou instrumentalismo. A partir de agora usaremos a palavra “realismo” para designar o realismo científico, e “realista” para designar o realista científico.
«Assim como muitos “ismos” filosóficos, o realismo científico aparece em muitas versões diferentes, e por isso não pode ser definido de uma maneira totalmente precisa. Mas a idéia básica é simples. Os realistas sustentam que o objetivo da ciência é fornecer uma descrição verdadeira do mundo. Isso pode parecer uma doutrina completamente inócua. Visto que ninguém pensa, certamente, que a ciência visa produzir uma descrição falsa do mundo. Mas não é isso que pensam os anti-realistas. Ao invés, os anti-realistas sustentam que o objetivo da ciência é fornecer uma descrição verdadeira de certa parte do mundo — a parte “observável.” Quanto à parte “inobservável” do mundo, não faz diferença se o que a ciência diz é verdadeiro ou não, presumem os anti-realistas.
«Ao que exatamente se referem os anti-realistas com “parte observável do mundo”? Referem-se ao mundo de mesas e cadeiras, de árvores e animais, de tubos de ensaio e bicos de Bunsen, de trovoadas e nevascas, e assim por diante. Coisas como essas podem ser percebidas diretamente pelos seres humanos — é isso o que quer dizer chamar-lhes “observáveis.” Alguns ramos da ciência tratam exclusivamente de objetos observáveis. Um exemplo é a paleontologia, ou o estudo dos fósseis. Os fósseis são facilmente observáveis — qualquer um com a visão funcionando normalmente pode vê-los. Porém, outras ciências fazem afirmações sobre a região inobservável da realidade. A física é o exemplo óbvio. Os físicos avançam teorias sobre átomos, elétrons, quarks, leptons, e outras partículas estranhas, nenhuma das quais pode ser observadas no sentido normal da palavra. As entidades deste tipo encontram-se além do alcance das faculdades de observação dos seres humanos.» (Samir Okasha, Realismo e anti-realismo, extraído de Philosophy of Science: a Very Short Introduction,in Crítica na Rede, 7 de Fevereiro de 2011; a letra negrita é colocada por mim).
O erro de Samir Okasha manifesta-se no texto que acabo de citar. Em vez de opor com clareza o realismo ao anti-realismo, considera este como uma versão empirista, anti metafísica, do realismo: ambos descreveriam a realidade visível e palpável do mundo material, realmente independente das mentes humanas, mas o realismo iria mais longe descrevendo o lado oculto do universo, as suas leis e mecanismos, os quarks, leptões, o Big Bang, etc, ao passo que o «anti realismo» faria uma epochê (suspensão da opinião, da especulação) sobre isso.
A verdade é outra. Anti realismo diferencia-se de realismo, não por eliminar a região metafísica dos «quarks», «leptões», «Big Bang», «universo a 10 dimensões da teoria das supercadeias», etc,mas por postular que o mundo de matéria visível ou palpável não é real em si mesmo, ou está dentro da mente humana (idealismo ontognosiológico) ou não existe de todo (negacionismo ou privacionismo ontológico). Okasha não entendeu isto: usa a expressão "anti realismo" sem ponderação, de modo anti dialéctico.
O instrumentalismo não é anti realismo: é antimetafisismo, anti especulacionismo. Há um realismo instrumentalista, um idealismo instrumentalista. Instrumentalismo não pertence ao género ontológico (natureza do ser), como realismo e idealismo e anti realismo. Por isso, instrumentalismo não pode opor-se a realismo: são conceitos mutuamente neutros, do ponto de vista dialéctico. O que Okasha designa por anti realismo é o pragmatismo, filosofia da acção e dos resultados práticos.
© (Direitos de autor para Francisco Limpo de Faria Queiroz)
Em «Oposição/ Contradição», um artigo muito interessante sobre a dialéctica, Enrico Rambaldi desenvolveu variados equívocos. Passemos a analisar alguns.
O REALISMO DA CONTRADIÇÃO NÃO É EXCLUSIVO DA DIALÉCTICA (INTERNALISTA)
Após descartar o senso comum por rejeitar a racionalidade da existência de contradições e oposições e "não ser significativo", Rambaldi escreve:
«Entre os modos de entender a oposição e a contradição que, pelo contrário, são significativos, um é o de evidenciá-las, para negar que seja possível um juízo de verdade, ou para contradizer um discurso e sobre ele construir outro; um segundo é o de analisá-las para delimitar o campo do saber; um terceiro, realista, é o de considerá-las o motor de todo o desenvolvimento.» (Enrico Rambaldi, Oposição/Contradição, Enciclopédia Einaudi, volume 10, pag 45, Casa da Moeda).
Esta distinção está confusa: há realismo da contradição - ou seja existência autónoma desta, fora da mente humana - tanto na segunda posição como na terceira, esta última heraclitiana/ hegeliana /marxista. O realismo não pode restringir-se à doutrina que coloca a contradição como motor interno de desenvolvimento de todos os entes e processos. É realista também a doutrina que reconhece a contradição como forma externa às coisas e entre estas mas não situada na essência interna de cada coisa.
Quanto ao cepticismo, não se trata de privação absoluta: o cepticismo apenas nos priva da certeza ontológica, mas não da imagem sensorial gnoseológica. Assim, o céptico possui algo, a verdade da aparência em si mesma e a dúvida metódica sobre a meta-aparência, a essência oculta, o ser do fenómeno.
O CEPTICISMO PIRRÓNICO É SUBJECTIVISMO RADICAL NEGATIVO? E O CONJECTURALISMO DE POPPER É SUBJECTIVISMO MODERADO CONSTRUTIVO?
Rambaldi designa o cepticismo de subjectivismo radical negativo:
«Subjectivismo radical negativo»
«(...) Na sua forma mais rigorosa (pirronismo), o cepticismo não deixa qualquer possibilidade de que este ou aquele juízo possa, mesmo fortuitamente, ser verdadeiro, mas demonstra , pelo contrário, a necessidade da dúvida universal. » (Enrico Rambaldi, Oposição/Contradição, Enciclopédia Einaudi, volume 10, pag 45-46, Casa da Moeda; o negrito é colocado por mim).
Esta definição de cepticismo é parcialmente errónea: o cepticismo comporta juízos verdadeiros, para o cepticismo pirrónico o juízo «sinto calor neste dia de verão» é verdadeiro, porque se reporta a sensações, a percepções empíricas. Para os cépticos, a dúvida não é universal no sentido de extensão total, de abrangente de todo o tipo de representação e ideação. A dúvida hiperbólica desenvolvida por Descartes, essa sim, foi total, mas não coincide com o pirronismo. Descartes duvidou das percepções empíricas, do "eu", de tudo, Pirron duvidou só do lado oculto, física ou especulativamente falando.
Na verdade, o cepticismo pirrónico não é um subjectivismo radical negativo: Pirrón não negava que vissemos o céu como azul e sentíssemos como salgada a água do mar, simplesmente negava que pudéssemos saber (intelectualmente ou sensório-idealmente) o que é o sabor salgado e se a côr existe mesmo no céu ou não. É um objectivismo antimetafísico e anti-racionalista: objectivismo no seu duplo sentido, porque a doutrina é perfilhada por muitos e porque capta o objecto exterior tal como é, na sua aparência visível e palpável; anti-racionalismo porque nega à razão o poder de arquitectar certezas por si mesma, para além da evidência sensorial. E a teoria de Popper de que «as ciências são conjuntos de conjecturas, inverificáveis como teses» não é, senão, um cepticismo pirrónico.
Rodolfo Mondolfo escreveu:
«Os primeiros cépticos, PIRRÓN e TIMÓN, colocam três problemas capitais para o sábio: qual é a natureza das coisas; que atitude devemos assumir face a elas; que resultará dessa atitude. À primeira questão respondem (desenvolvendo motivos do relativismo de Heráclito e de Protágoras): só conhecemos o que sentimos; podemos afirmar que o fenómeno tal como nos aparece, por exemplo que o mel nos parece doce, mas que tal seja o seu ser em si. E por isso, a resposta à segunda questão é que devemos reconhecer e seguir os fenómenos, mas suspender o juízo sobre o que está oculto (a coisa em si); desta maneira temos no fenómeno o critério necessário para a conduta prática, sem possuir o inalcançável critério da verdade objectiva.» ( Rodolfo Mondolfo, Breve Historia del pensamento antiguo, Editorial Losada, pág 75, Buenos Aires, 1953; o negrito é posto por mim).
E Rambaldi classifica, de forma errónea, a teoria das conjunturas e refutações de Karl Popper de subjectivismo moderado construtivo:
«1.2 Subjectivismo moderado construtivo»
«Nem todas as perspectivas que excluem (ou se recusam a examinar a examinar se) os conceitos podem recapitular o mundo exterior implicam, no entanto, um tal pessimismo. Existem, pelo contrário, algumas que desenvolvem um uso heurístico positivo de contradições e oposições. Assim, Popper critica grande parte da epistemologia sua contemporânea porque ela lhes não concedia espaço adequado.» (Enrico Rambaldi, Oposição/Contradição, Enciclopédia Einaudi, volume 10, pag 46, Casa da Moeda; o negrito é colocado por mim).
Popper não é, em termos de princípio filosófico, mais construtivo do que Pirron ou Carnéades, autor do probabilismo, um cepticismo diferencial. Sucede que Popper é um céptico pragmático e, como tal, valoriza a acção, os exemplos corroborados, mas nega certeza a qualquer doutrina científica fundada na indução, excepto à matemática e à ontologia realista (o mundo material subsiste fora do meu espírito). Não há, pois, razão para esta distinção entre subjectivismo radical negativo e subjectivismo moderado construtivo, quando se põe Pirron num prato da balança e Popper no outro. Decerto, a obra de Popper é muito mais substancial do que a de Pirron mas a posição filosófica é, talvez salvo uma ou outra diferença, a mesma: cepticismo.
Nem o cepticismo pirrónico clássico nem a teoria de Popper são espécies do género subjectivismo. Subjectivismo pertence ao género "número de sujeitos que perfilham uma doutrina" e cepticismo é espécie do género «grau de certeza de uma doutrina».
© (Direitos de autor para Francisco Limpo de Faria Queiroz)
Segundo o taoísmo, milenar filosofia chinesa, o Tao é a «mãe do universo», o princípio de tudo, e ramifica-se em duas tendências, uma centrífuga a outra centrípeta: Yang e Yin.
O Yang ou princípio masculino significa: luz, dilatação, para fora, fogo, calor, vermelho, alto. O Yin ou princípio feminino significa: escuridão, contracção, para dentro, água ou terra, frio, azul, baixo.
Duas leis pautam a relação Yang-Yin:
1) Demasiado Yang origina Yin. Exemplo: as estrelas ardem (demasiado yang) e transformam elementos leves como o hidrogénio e o hélio (yang) em elementos mais pesados como o ferro (yin).
2) Demasiado Yin origina Yang. Exemplo: quando um electrão se aproxima do núcleo (demasiado yin) liberta energia (yang).
As noções de Yang e Yin além de um conteúdo absoluto, estável, em si, apresentam um conteúdo relativo, provisório, relacional, para outro: assim, a água e a terra são yin face ao fogo, mas a terra é mais yin - concentrada, imóvel, escura - do que a água.
A luta Yang-Yin encontra-se presente na realidade física e nas teorias que a espelham ou interpretam. Vejamos exemplos:
A) A electrodinâmica quântica (QED), teoria de Richard Feynman, tem dois parâmetros: a carga e a massa do electrão. A carga é yang e a massa é yin.
B) Segundo a teoria de Maxwell, a electricidade (yang) e o magnetismo (yin) são duas faces da mesma moeda, geradoras de uma onda electromagnética, ao interagirem. A luz é uma onda electromagnética, uma cadeia de campos eléctricos em torno de campos magnéticos.
C) A radiação ultravioleta (cor yin) possui um comprimento de onda mais curto (yin) do que a luz violeta visível. A radiação infravermelha (cor yang) possui um comprimento de onda mais longo (yang) do que a luz vermelha visível.
D) Há quatro forças fundamentais, duas delas yin, de tendência contráctil, e duas outras yang, de tendência expansiva.
Assim, existem:
1) A gravidade ou força gravitacional (yin), força atractiva que mantém unido o sistema solar e evita a explosão das estrelas. É a mais fraca das quatro forças mas aquela que se exerce numa maior vastidão. A magnitude relativa é de 10 e o seu mediador o gravitão, partícula de massa nula.
2) O electromagnetismo (yang) que inclui a luz, as ondas de rádio e televisão, microcondas, raios X, radar, baseado na transmissão dos fotões. A sua magnitude relativa é dez elevado à potência de 39, o mediador é o fotão. O campo magnético é o resultado de uma corrente eléctrica.
«Na Terra, a força electromagnética é, por vezes, suficientemente forte para se sobrepor à gravidade. Por exemplo, friccionando um pente, é possível levantar pedaços de papel de uma mesa. A força electromagnética contraria assim a força descendente da gravidade e é dominante sobre outras forças até 0,0000000000001 da polegada (aproximadamente a dimensão de um núcleo).» (Michio Kaku, Jennifer Trainer, Para além de Einstein, pag 18, Publicações Europa-América).
3) A força nuclear forte (yin), é a interacção entre os quarks e os gluões e tem um curtíssimo raio de acção de dez elevado à potência menos treze. Mantém coeso (yin) o núcleo de cada átomo: mantém os protões unidos entre si,por serem compostos de quarks, vencendo a força repulsiva entre os protões, e mantém unidos os neutrões, compostos de quarks, no núcleo de cada átomo. A interacção forte possui a magnitude relativa de dez elevado à potência 41 e o seu mediador é o gluão: é cerca de cem vezes mais forte que a força electromagnética, cerca de dez elevado à potência onze maior que a força fraca e cerca de dez elevado à potência trinta e nove maior que a gravidade.
4) A força nuclear fraca (yang) é a força que cinde as partículas e constitui, por exemplo, a radioactividade - ou desintegração (yang) de um núcleo instável de urânio com emissão de partículas alfa, beta, radiações electromagnéticas de alta frequência gama e poeiras até que o núcleo fique estável (yin) - e provoca o calor desenvolvido pelo núcleo de um reactor de energia nuclear gerador de electricidade. Os seus mediadores são os bosões W e Z e a sua magnitude relativa é de dez elevado à potência 29. Juntamente com o electromagnetismo constitui a força electrofraca.
E) A teoria da relatividade especial de Einstein postula que o tempo se retrai e ralentiza (yin) à medida que um corpo acelera (yang) o seu movimento de translação. Assim, o tempo no interior de um foguetão em movimento no espaço sideral é mais lento do que em Terra. Há , pois aqui, uma simetria de unificação: o espaço (yang) unifica-se com o tempo (yin), a energia (yang) unifica-se com a matéria (yin).
F) A teoria da relatividade geral de Einstein postula que um raio de luz (yang) se encurva ao passar na proximidade de uma grande massa (yin), por conseguinte dotada de força gravítica(yin). Modela, pois, a gravidade em função da curvatura espaço-tempo.
G) A conversão da matéria (yin) em energia (yang) pode efectuar-se mediante a cisão do átomo que liberta a imensa energia (yang) conservada no seu núcleo.
H) A teoria quântica, criada por Max Planck, postula que a onda de luz (yang) como toda a energia é divisível em «quantas» ou pequenas partículas (yin).
G) O princípio da incerteza de Werner Heisenberg estabelece que é impossível conhecer em simultâneo a velocidade (yang) e a posição (yin) de uma partícula como o electrão. O acto de observar um electrão no átomo faz com que o feixe luminoso de fotões desloque a posição do electrão.
I) Na vida de uma estrela, a fornalha termonuclear existente nela (yang) dilata a estrela, até esta se tornar uma gigante vermelha (yang) mas gasta-se e a força de implosão da gravidade (yin) passa a dominar a estrela e fá-la colapsar, durante milhões de anos ou num simples instante, desabando o núcleo da estrela sobre si mesmo (yin) e transformando-se em buraco negro (yin).
J) A teoria da relatividade generalizada domina o macrocosmos (yang) e a teoria quântica domina o microcosmos (yin).
K) Durante o dia, a luz do sol embate nas moléculas de ar em todas as direcções e dispersa-se (yang) fazendo ver o céu como azul (yin). Vemos o pôr do sol avermelhado (yang), porque a luz se desloca horizontalmente até aos nossos olhos por uma grande quantidade de ar. Na Lua, que não tem ar para dispersar a luz do sol, o céu é visto de cor negra, mesmo de dia.
L) Quando um electrão situado na camada mais interna (yin) do átomo, é atingido por uma certa quantidade de energia (yang) , salta para a camada imediatamente a seguir, mais externa (yang). Em seguida, logo que seja possível, salta para a posição inicial, mais interna, mais próxima do núcleo (yin) devolvendo a energia (yang) que usara.
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O que é o sentido (em grego: ennoia) de algo ? Na língua grega actual, a expressão o sentido das coisas diz-se "ennóia (sentido) tós pragmáton (coisas) (την έννοια των πραγμάτων). A expressão "sentido de" significa, não a capacidade sensorial humana, mas uma ordem, imanente ou transcendente a cada coisa. Sentido tem várias acepções, entre as quais:
A) Finalidade (télos) ou causa final . Por exemplo, na cosmologia de Aristóteles, o sentido do movimento dos corpos no mundo sub-lunar é o do retorno à fonte primordial: uma maçã cai da árvore em direcção à esfera da terra no centro do mundo porque a sua finalidade é voltar ao lugar de origem. O sentido de uma chama subir no ar é o desejo de regressar à esfera do fogo, de onde é originária, esfera essa que se situa acima das esferas da terra, água e ar.
B) Proporção (logos), que é o sentido imanente a algo, por comparação entre as diferentes partes.
C) Inteligência (nous).
D) Direcção (tésis).
E) Inerência de uma qualidade à respectiva substância.
F) Necessidade (ananké), isto é, lei infalível de causa-efeito, que estrutura não só a natureza biofísica - a físis, ou seja, o nascimento, crescimento, declínio e morte ou desagregação dos entes - mas também a lógica e a matemática.
G) Ordem (táxis).
O sentido é, pois, um nexo ou elo de ligação do ponto de vista da coerência interna - o que se exprime sobretudo na táxis, ananké, logos e no nous- mas também do ponto de vista da referência ou correspondência externa - o que se traduz sobretudo na direcção, na necessidade e na finalidade, e também no logos universal, no nous. Há sentido no monismo e sentido no dualismo. O positivismo lógico reduziu o termo sentido ao binómio ideação-comprovação: só tem sentido algo que se pense e se formule por palavras e se comprove empiricamente, de forma directa ou indirecta. É uma definição insuficiente, falseadora. É exactamente o oposto da ideia de "sentido-nexo" da filosofia grega antiga e da posterior tradição filosófica.
O que é interessante é notar a tonalidade intelectual do conceito de "sentido" na língua grega, em oposição a outras línguas como o português, o espanhol, o francês, o inglês em que o termo "sentido" designa também a capacidade de percepção sensorial (aistésis, em grego): em português, fala-se, por exemplo, no "sentido da vista" e no "sentido da vida"; em espanhol usa-se o termo "sentido" para "la visión, audición, olor, etc" e para o nexo inteligente da vida, el «sentido de la vida»; em francês, les "sens des organes sensorielles" são de natureza diferente do "sens de ce mot ou de cette phrase, uns sens intelectuel"; em inglês, "the five senses of the body" e "the sense of life" possuem significados muito distintos.
Na língua grega, não se confunde, no plano vocabular, a ideia de sentido como nexo ou ordem inteligível das coisas com a ideia de sentido como faculdade de percepção empírica, sensorial.
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