Terça-feira, 3 de Agosto de 2010
A verdade e o belo para Heidegger e para Hegel

 

Heidegger, em coerência com a sua fenomenologia - doutrina da correlação e da simultaneidade sujeito-objecto - sustentou que a verdade (em grego: aletheia, isto é, desocultação) não é o dado primordial, o ser, mas o acto que institui a descoberta do ser dos entes e do ser em geral.

Assim escreveu:

 

« A verdade só acontece de modo que ela se institui por si própria no combate e no espaço de jogo que se abrem. Porque a verdade é a reciprocidade adversa entre clareira e ocultação, faz por isso mesmo parte dela o que aqui se chama instituição (Einrichtung). Mas a verdade não existe de antemão, algures, nas estrelas, para ulteriormente se alojar em qualquer ente. Isto é já impossível porque, de facto, só a abertura do ente produz a possibilidade de um algures e de um lugar preenchido por algo de presente. Clareira de abertura e instituição no aberto co-pertencem-se. São uma e a mesma essência do acontecimento da verdade. Este é, de diversas maneiras, histórico.»

«Um modo essencial como a verdade se institui no ente que ela mesma abriu é o pôr-em-obra-da-verdade. Um outro modo como a verdade está presente é o acto de fundação de um Estado. Um outro modo como a verdade vem à luz é a proximidade do que, pura e simplesmente, não é um ente, mas antes o mais ente entre os entes. Ainda um modo como a verdade se funda é o sacrifício essencial. Ainda um outro modo como a verdade passa a ser é através do perguntar do pensar que, enquanto pensar do ser, designa este no seu ser-digno-de-pergunta. Pelo contrário: a ciência não é um acontecimento original da verdade, mas sim a exploração, de cada vez, de um domínio da verdade já aberto e, mais propriamente, mediante a apreensão e fundamentação do que de correcto, possível e necessário, se mostra no seu domínio. Sempre que, e na medida em que, uma ciência ultrapassa o correcto em direcção a uma verdade, a saber, um desvelamento (Enthüllung) essencial do ente como tal, ela é filosofia.» (Martin Heidegger, A origem da obra de arte, Edições 70, pag 49-50; a letra negrita é de minha autoria).

 

A verdade, em Heidegger, ou seja o acto de desocultação,  a abertura entre o Dasein ( ser aí, isto é, cada homem) e os objectos que preencherão o mundo ou porta aberta entre o homem e as coisas, desempenha pois a função da razão, portadora do real, na doutrina de Hegel. Mas, nesta, o verdadeiro é o em si, o pensamento divino, independentemente de haver ou não humanidade, sujeitos pensantes. O verdadeiro para Hegel é o racional, o ser absoluto, Deus e as suas derivações - natureza biofísica, humanidade. O verdadeiro está no começo, no meio e no fim. Para Heidegger o começo não é a verdade mas o ser: a verdade, embora originária, é ontologicamente posterior ao ser, pois ocorre ao abrir-se a flor que é o ente humano para o jardim que é o mundo.

 

O BELO NAS CONCEPÇÕES DE HEIDEGGER E HEGEL

 

Heidegger situa a beleza como um momento final do processo de instituição da verdade, isto é, de desocultação do ser, dando a impressão de perfilhar o objectivismo estético:

 

«A verdade é a desocultação (die Unverborgenheit) do ente como ente. A verdade é a verdade do Ser. A beleza não ocorre ao lado desta verdade. Se a verdade se põe em obra na obra, aparece. É este aparecer, enquanto ser da verdade na obra e como obra, que constitui a beleza. O belo pertence assim ao auto-acontecimento da verdade (das Sichereignen der Wahrheit). O belo não é somente relativo ao agrado (das Gefallen) e apenas como o seu respectivo objecto. Todavia, o belo reside na forma, mas apenas porque outrora a forma clareou a partir do ser, enquanto a entidade do ente. O ser aconteceu então como eidos. A idea insere-se na morfé. O sínolon, o todo unido da morfé e da hilé, a saber, o ergon é no modo de energéia. Este modo de presença torna-se a actualitas do ens actu. A actualitas torna-se realidade. A realidade converte-se em objectividade, e objectividade torna-se vivência (Erlebnis).» (Heidegger, A essência da obra de arte, pags 66-67).

 

Que significa dizer que a ideia se insere na morfé (forma), se a ideia é, ela mesma, uma forma? Significa que há vários níveis da forma que exprime uma dada qualidade ideal- esta tese é muito platónica, está expressa em «O banquete» e Heidegger retoma-a. Assim, o Belo como ideia, quase informal, desce à matéria através de uma forma (morfé) concreta. Questionável é o pensamento «A actualitas torna-se realidade. A realidade converte-se em objectividade»... Então a actualitas não é a realidade presente, em acto?  Pode conceber-se um acto - no sentido aristotélico do termo - que não seja realidade? Só se adoptarmos a concepção hegeliana de que só o real é racional podemos aceitar que tenham existência presente (actualitas) coisas irreais porque colocadas fora do espírito do tempo...Mas seria isso que Heidegger visava? Não é certo.

Ao dizer que "o belo reside na forma" Heidegger parece distanciar-se de Hegel cuja posição eu resumiria assim: o belo reside no ideal, mesmo sem forma, isto é, no arquétipo e na felicidade serena (eudaimonia em grego) que se extrai das e se plasma nas formas sensíveis da arte e da natureza. Hegel escreveu:

 

«É graças a isso ( nota minha: ao poder de a arte fazer a ponte entre o ideal e o mundo sensível) que o ideal permanece livre, encerrado em si e, assente sobre si mesmo no próprio seio do sensível, só de si extrai toda felicidade e alegria. Os ecos desta felicidade ressoam através de todas as manifestações do ideal pois, por múltiplas que sejam as formas em que ele aparece e por mais longe que se alarguem aquelas manifestações, sempre se reencontra a jamais perdida alma do ideal. Daí lhe vem a sua verdadeira beleza: pois que o belo só existe como unidade total e subjectiva, sujeito do ideal, subtraído ao estado de dispersão em que vivem as individualidades da vida real com seus fins e aspirações heterogéneas, concentra-se em si mesmo e ergue-se a uma totalidade e autonomia superiores. Pode, por conseguinte, dizer-se que o que, antes de tudo, caracteriza o ideal é a tranquilidade e a felicidade serena, é a satisfação e a fruição de que goza sem sair de si. Toda a representação artística do ideal nos surge como uma divindade gloriosa.» (Hegel, Estética, o Belo Artístico ou o Ideal, Guimarães Editores, 1964, págs 14-15; a letra negrita é posta por mim).

 

Parece-me certa a seguinte diferença entre as posições de Heidegger e Hegel: para Heidegger, o belo reside na forma, que o ser (essência universal, humana e transumana) moldou ou clareou, e suscita o agrado, que é exterior à essência do belo; para Hegel, o belo reside no ideal, seja este o sentimento ou a forma arquetípica, e na felicidade serena, no agrado experimentado pelo ser humano subjectivo. Há pois uma maior dimensão subjectiva do belo em Hegel do que em Heidegger. Escusado será dizer que considero a «Estética» de Hegel uma obra de qualidade superior a «A essência da obra de arte» de Heidegger.

 

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Segunda-feira, 2 de Agosto de 2010
Alain Renault segue Kant na falsificação da exposição do idealismo de Berkeley

 

O suculento livro "A filosofia"  de Alain Renault, catedrático de filosofia na Universidade de Paris IV, Sorbonne,  é um espelho do ensino universitário institucional: rico e caudaloso em erudição, deficiente em subtileza e autêntica profundidade filosófica. Vejamos alguns dos equívocos transmitidos por esta extensa obra.

 

A INCAPACIDADE DE COMPREENDER QUE O IDEALISMO DE KANT É O MESMO QUE O DE BERKELEY, NO ESSENCIAL

 

O conhecimento profundo da ontognoseologia de Kant é uma pedra de toque de um verdadeiro filósofo. Já neste blog insisti no facto de que nenhum catedrático de filosofia a nível mundial identifica o idealismo material de Berkeley com o idealismo material dito "transcendental"  de Kant, ao menos que eu saiba. Todos embarcam na mistificação, montada pelo próprio Kant, de que o seu idealismo seria diferente do de Berkeley, quando de facto, não é - exceptuada a parte acessória das estruturas a priori teorizadas por Kant. Kant aprendeu com Berkeley a fundamentar o seu imaterialismo e, numa reviravolta de sáurio, sem justificação a não ser a da vaidade pessoal, golpeia o seu mestre irlandês. Escreveu Kant:

 

«O próprio espaço, com todos os seus fenómenos como representações, só existe em mim; mas, nesse espaço, contudo, é dado o real ou a matéria de todos os objectos da intuição externa, verdadeira e independente de toda a ficção; e é também impossível que, nesse espaço, seja dada qualquer coisa de exterior a nós ( no sentido transcendental) porque o próprio espaço nada é fora da nossa sensibilidade. Por conseguinte, o idealista mais rigoroso não pode exigir que se prove que à nossa percepção corresponda o objecto exterior a nós (no sentido estrito)... O real dos fenómenos externos é, portanto, apenas real na percepção e não pode sê-lo de nenhuma outra maneira». (Kant, Crítica da Razão Pura, Fundação Calouste Gulbenkian, página 354-355)

 

Ora Berkeley diz exactamente o mesmo: a matéria dos corpos só é real na percepção, é irreal em todos os outros sentidos possíveis. Assim sendo, como pode Kant acusar Berkeley de negar a realidade do espaço em si quando ele, Kant, faz o mesmo?  Escreveu Berkeley:

 

«Diga-se porém: não existe matéria, se por MATÉRIA se designa uma substância impensante, que tem existência sem ser na mente; mas se se entende por MATÉRIA uma coisa sensível, cujo ser consiste na percepção respectiva, então realmente a matéria existe ( Berkeley, «Três Diálogos...», pag. 138)

«Não é certo que mude as coisas em ideias, senão antes que as ideias as mudo eu em coisas: pois aos objectos imediatos da percepção, que para vós não passam de aparências das coisas, considero-os como coisas reais” (« Três Diálogos», pág. 112).

 

A matéria é irreal em si mesma mas existe fora do meu corpo físico e dentro do imenso balão do meu espírito - este é o idealismo material que tanto Berkeley como Kant defendem. O que Kant designou como realismo empírico, isto é, existência aparente da matéria, está aqui exposto por Berkeley. Incapaz de compreender isto, Alain Renault escreveu, seguindo irreflectidamente o discurso falacioso de Kant na "Crítica da Razão Pura":

 

«Kant distingue dois tipos de idealismo: o idealismo dogmático de Berkeley, que defende um imaterialismo radical, a saber, que não existe nada, (nenhum mundo exterior)  fora do meu pensamento. O erro de Berkeley, segundo Kant, é imaginar que o sujeito possa ser considerado independente dos objectos que o rodeiam: eu não posso ter consciência de mim mesmo e da minha própria existência sem ter consciência do mundo. Quanto ao idealismo problemático de Descartes, esse defende, especialmente nas duas primeiras Meditações Metafísicas, que a existência do eu é muito mais certa do que a do mundo exterior, e que a existência de objectos no espaço é indemonstrável (o que torna necessária a intervenção propriamente metafísica de Deus no seu sistema filosófico). Estas duas versões do idealismo são falaciosas: apresentando o espaço e o tempo como propriedades das coisas e não formas puras da intuição que o sujeito tem das coisas, Descartes e Berkeley cortam o sujeito do objecto, ou seja, do mundo exterior.» (Alain Renault, A filosofia, Instituto Piaget, pag 723; a letra a negrito é posta por mim).

 

É falso dizer que Berkeley apresentasse o espaço como propriedade dos corpos. Para Berkeley, espaço e corpos são indissociáveis e ambos, isentos de realidade em si mesmos,  são criação da mente humana ou da mente divina. Atente-se no que escreveu:

 

«E talvez se bem inquirirmos, concluiremos não poder formar a ideia de espaço puro, exclusivo de todos os corpos. Esta ideia, a mais abstracta, parece-me impossível. Quando provoco um movimento do meu corpo, se não há resistência, digo que há espaço; se há resistência, digo que há corpo; e na proporção da resistência maior ou menor, digo que o espaço é mais ou menos puro. Assim, quando falo do espaço puro ou vazio não deve supor-se que a palavra "espaço" representa uma ideia distinta ou concebível sem corpos e movimento.» (George Berkeley, Tratado do Conhecimento Humano, Atlântida Editora, pags 79-80).

 

O espaço é correlato dos corpos físicos, mas não é corpo material, não é propriedade dos corpos mas complemento destes. Isto é oposto ao que Renault afirma ter postulado Berkeley: «o espaço e o tempo como propriedades das coisas...». Assim, Alain Renault, tal como Kant, falsifica o pensamento desse filósofo notável que foi George Berkeley, falsificação essa de que não se apercebeu a generalidade dos estudiosos de filosofia.

 

UMA CONFUSA DEFINIÇÃO DE REALISMO

 

No glossário de filosofia, Renault revela ainda assinaláveis imprecisões como, por exemplo, ao definir realismo:

 

«Realismo: Em filosofia o realismo consiste em afirmar que existe uma realidade independente do conhecimento que se tem dela. Em filosofia das matemáticas, também se pode defender uma tese realista: os objectos e as relações matemáticas são nesse caso reportados, existem realmente de forma separada do nosso espírito.» (Alain Renaud, A filosofia, pag 732).

 

Esta definição é vaga e incorrecta no primeiro parágrafo. No idealismo de Kant os númenos ou coisas em si são incognoscíveis, isto é, são independentes do conhecimento humano mas são ideias, coisas imateriais, não são coisas físicas - por isso a doutrina de Kant não é realismo, ainda que Kant a denomine de realismo empírico, diferente do realismo ontológico.

 

Resta dizer que Renault, tal como Heidegger, Russell, Popper e a quase totalidade dos filósofos contemporâneos famosos e seus epígonos catedráticos e agregados de filosofia nas universidades, consideram, erroneamente, que a «coisa em si»  de Kant é um objecto material inapreensível, na sua pureza, pelos orgãos dos sentidos que apenas nos forneceriam o fenómeno ou aparência.

Exceptuo Hegel e, segundo me parece, Rorty, desta incompreensão essencial da ontognoseologia de Kant.

 

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Imprecisões de José Gil sobre o «chico-espertismo» e as formas de «dobragem» da consciência individual

No seu livro "Em busca da identidade- o desnorte", José Gil, catedrático de filosofia, define, no contexto de Portugal, o chico-espertismo ou habilidade de contornar a lei ou mesmo violá-la subtilmente com fins egoístas. Mas, apesar das virtudes do livro em particular na denúncia da monstruosidade burocrática da avaliação de professores e outros funcionários públicos posta em marcha pelo governo social-democrata de José Sócrates, há nele uma pequena cratera de incoerência  sobre a idiossincrasia do português. Escreveu José Gil:


« O chico-espertismo não é, pois, um traço psicológico, um aspecto do carácter do português. Como vimos constitui um espírito e uma prática que se situa no cruzamento das técnicas do "cuidar de si", enquanto processo de subjectivação, e as tecnologias do poder. O chico esperto não é o mentiroso, o grande escroque, o corrupto que se coloca claramente fora da lei.»


«Pelo contrário, aproveita um espaço não preenchido pela lei para cometer um acto quase legal, mesmo quando implica pequenas trangressões das normas jurídicas». (José Gil, Em busca da identidade-o desnorte, Relógio d´´Agua, pag. 32; a letra negrita é de minha autoria).


Mas contradiz-se ao afirmar adiante:


«Muita gente, largamente "desenrascada" na vida, pratica quotidianamente o chico espertismo: este é co-extensivo à nossa relação com o outro, com as instituições, com o poder e mais, connosco próprios. É inerente à subjectividade portuguesa, tomando actualmente uma dimensão alargada que envenena profundamente as relações sociais no nosso país.» (José Gil, ibid).


Acima, Gil afirma que o chico espertismo não é um traço psicológico do carácter português, abaixo, sustenta que é ( «...é inerente à subjectividade portuguesa»). Há aqui uma incoerência.


Importa questionar o nosso catedrático afrancesado sobre o seguinte: não há chico espertismo em França e na Europa tecnologicamente mais rica? Não há centenas de milhar de alemães, que poderiam trabalhar, a viver do rendimento social garantido pelo Estado? E se há, isso não é manifestação de chico espertismo?


Parece-me que o "chico espertismo"  - que Lenine classificaria como o "oportunismo pequeno-burguês" na sua faceta quotidiana - existe em todas as sociedades e não é peculiar da sociedade portuguesa. Está, porventura, mais desenvolvido em Portugal, do que na Noruega, Suécia ou Dinamarca, sociais-democracias com melhor nível de vida e uma tradição protestante do cumprimento do dever mais enraízada, nas quais não é necessário ser chico esperto para desfrutar de uma vida razoavelmente boa no plano material-social.


VER TRÊS FORMAS DE DOBRAGEM ONDE SÓ HÁ DUAS


Ao referir-se à dobragem, conceito extraído de Foucault que significa a moldagem das consciências individuais a partir de normas sociais e valores coercivamente lançados de fora, José Gil distingue três modalidades:


«Há vários tipos de dobragem. Um deles diz respeito à força de singularização e de individuação, força vital apanhada pelas formas de poder e de saber que nos impõem uma individualidade determinada, apta a desempenhar as funções que lhe são atribuídas. Trata-se aqui, de facto, de um tipo de domínio do poder moderno sobre os indivíduos, fabricando subjectividades pré-concebidas - assim, por exemplo, acontece no trabalho imaterial dos "serviços" , tal como um lugar de "relações públicas"  de uma empresa, para a qual se exige um "perfil" psicológico e comportamental específico ou como um manequim a quem se pede um certo corpo, um certo estilo de inexpressividade, etc. A dobra da subjectivação interioriza nos indivíduos uma maneira de estar e de ser que atinge o cerne das suas vidas.»


«Um outro tipo de dobragem consiste em fixar para cada indivíduo uma identidade bem definida socialmente, quer dizer, pertencente a uma categoria definitiva. E, mais uma vez, é na relação dos indivíduos com o poder que este dobra a força da singularidade "individual" - que não é pessoal, psicológica, mas, pelo contrário, força de transformação, força impessoal de "ser múltiplo" (como diria Fernando Pessoa). Como exemplo dominante de subjectivação nas sociedades contemporâneas, pode-se a apontar a avaliação enquanto método universal de formação de identidades necessàrias à modernização.» (José Gil, Em busca da identidade- O desnorte, pags 24-25; a letra negrita é posta por mim).


Não se percebe a diferença entre os dois tipos de dobragem referidos por Gil neste texto: um diz respeito à "singularização" - o exemplo invocado é o do perfil exigido para ser "relações públicas" de una empresa ou manequim -  e o outro, segundo Gil, fixa "para cada indivíduo uma identidade bem definida socialmente, quer dizer, pertencente a uma categoria definitiva" - e o exemplo invocado é o da avaliação. Mas não são ambas as formas de dobragem o mesmo? Não têm um manequim ou um "relações públicas" uma identidade bem definida socialmente? E não são ambos sujeitos a uma avaliação?


Gil duplicou o que não é duplicável. Hiper-análise e hipo-síntese. Com a navalha de Ockham, reduzimos a uma só estas "duas" modalidades de dobragem.


José Gil refere ainda uma "terceira" modalidade de dobragem:


«Trata-se da relação de poder de influência (ou de poder) que o líder entretém com os cidadãos» (ibid, pag 26).


Assim onde há duas modalidades de "dobragem" / moldagem das consciências a partir de fora, Gil "vê" três.


 


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Equívocos de Nietzsche sobre as filosofias de Parménides e Zenão de Eleia

Sem embargo de ser um filósofo genial, Friederich Nietzsche (1844-1900) manifestou lacunas importantes sobre a filosofia antiga - ele, que se considerava um agente de ressurreição de um certo helenismo aristocrático, contra-revolucionário!

Além de um ataque néscio, infundado à astrologia, ou melhor, à ideia de que as revoluções planetárias no céu determinam a vida humana e biológica na terra, - ideia que hoje em dia a esmagadora maioria dos filósofos consagrados rejeita por ignorância dos princípios da astronomia- Nietzsche produziu uma obtusa interpretação das teses da escola eleática de Parménides e Zenão. Escreveu:

 

«Assim que se admite que o conteúdo empiricamente dado das nossas representações, buscando neste mundo sensível,  é uma veritas aeterna, chega-se a contradições. Se existe um movimento absoluto, não há mais espaço; se existe o espaço absoluto, não há movimento; se há um ser absoluto, não há multiplicidade; se existe a multiplicidade absoluta, não há mais unidade.» (...)

«No entanto, Parménides e Zenão sustentam a verdade e o valor universal dos conceitos e rejeitam o mundo sensível enquanto o oposto dos conceitos verdadeiros e universalmente válidos, como se fosse uma objectivação do que é ilogicamente, do que é ilógico e contraditório. Em todas as demonstrações que fazem, partem do pressuposto absolutamente indemonstrável, ou mesmo improvável, de possuirmos na faculdade conceptual o decisivo critério àcerca do ser e do não ser, isto é, àcerca da realidade objectiva e do seu contrário (Friederich Nietzsche, A filosofia na idade trágica dos gregos, Edições 70, pág 73; o negrito é posto por mim).

 

Não se percebem os supostos paradoxos delineados por Nietzsche: por que razão havendo espaço absoluto não pode haver movimento?  Porque razão o ser absoluto exclui a multiplicidade, se a característica de ser não é, em si mesma, una nem múltipla ou é ambas as coisas? Falta de claridade nestas pseudo aporias...

Por outro lado, Nietzschze lança a errónea afirmação de que «Parménides e Zenão sustentam o valor universal dos conceitos.». Isto é nuvem de confusão. Ambos os filósofos eleáticos negaram, no plano do ser (einai), os conceitos universais de nascimento e morte, múltiplo, movimento, aumento e diminuição, infinito, devir e outros.

 

Parménides afirmou: «Sem o Ser, tal como foi enunciado, não poderíamos pensar, não havendo nada fora do Ser, considerando que a Necessidade o ordenou uno e imóvel. Por este motivo, as coisas são simples nomes atribuídos pelos mortais, na sua incredulidade. Nascimento e morte, Ser e Não-Ser, mutabilidade e alteração das cores maravilhosas!» (Parménides, Fragmentos, da Natureza, in Filosofia grega pré-socrática, Pinharanda Gomes, Guimarães Editores, pag 222; a letra negrita é minha).

 

Zenão escreveu:« Se o ser fosse adicionado a outra coisa, não a tornaria maior, porque nenhuma coisa pode ser maior pela adição de infinito, de onde se segue que o aumento é nulo. Mas, se for subtraído a outra coisa esta não fica menor; tal como a anterior não fica maior. Assim se demonstra que nem o aumento nem a diminuição têm qualquer significado.» (Zenão, Fragmentos, in Filosofia grega pré-socrática, Pinharanda Gomes, Guimarães Editores, pag 232; a letra negrita é minha).

 

Constata-se, nas citações acima, que os conceitos universais de nascimento e morte, mudança do ser ao não ser e vice-versa, aumento e diminuição são rejeitados por Parménides e Zenão de Eleia na sua aplicação ao Ser.

 

Nietzsche supõe que Parménides e Zenão pensavam exclusivamente por conceitos. Parece ignorar uma fonte fundamental do pensamento: a intuição noética ou inteligível que fornece a noção do uno primordial, do devir, da luta de contrários e que desempenha, por assim dizer, o papel da «sensação» no plano do espírito racional.

 

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