No importante diálogo «Timeu» Platão expõe a sua tese sobre o espaço vazio («Chora») da seguinte maneira:
« Há primeiro a forma imutável que não nasceu e que não perecerá, que não recebe nela, nada de estranho (...) Há uma segunda espécie, que tem o mesmo nome que a primeira e é semelhante à primeira mas sensível; que é gerada, sempre em movimento, que nasce num lugar determinado para depois o abandonar e perecer, e que é acessível à opinião acompanhada de sensação. Enfim, há sempre uma terceira espécie, a do lugar (chora), que não admite destruição e que fornece um lugar a todos os objectos que nascem. Só é perceptível através de um raciocínio bastardo, onde a percepção não entra; dificilmente podemos acreditar nela. Entrevemo-la como num sonho, dizendo que é necessário que tudo aquilo que é esteja num lugar determinado, ocupe um certo sítio, e que aquilo que não está nem sobre a terra nem em algum lugar debaixo do céu não é nada.» (Platão, Timeu, Publicações Europa-América, pag 277).
Platão fala, pois, de três níveis: o da forma imutável ou arquétipo, situada acima do céu visível, no hiperurânio; o das formas mutáveis e corruptíveis, porque imersas na matéria em devir, no mundo terrestre; o do espaço, como imenso lugar vazio, receptáculo das formas e da matéria caótica. Omite aqui um nível que refere noutros textos: o dos astros incorruptíveis em movimento eterno tecendo o tempo, que constitui o Mundo do Semelhante.
Aristóteles acusa, injustamente, em certa medida, Platão de confundir o espaço com a matéria:
«Daí que Platão diga no Timeu que a matéria e o espaço são o mesmo, pois que o participável (metaléptikon) e o espaço são uma e a mesma coisa - ainda que fale de maneira diferente nos chamados Ensinamentos não escritos, identificou sem embargo o lugar e o espaço. Todos dizem que o lugar é algo, mas só ele tentou dizer o que é.» (Aristóteles, Física, Livro IV, 209 a; a letra negrita é posta por mim).
Há algo de aparentemente incompreensível neste texto: a afirmação de que Platão identificou o lugar com o espaço. Mas então o lugar não é uma porção de espaço? Parece que não, na concepção aristotélica.
Platão identificou de facto o espaço puro com uma espécie invisível, extensa e passiva, que traduz a hylé ou matéria-prima de Aristóteles. Não identificou, no entanto, este espaço puro ou mãe de todas as coisas ou receptáculo vazio universal com água, terra, fogo ou ar ou alguma matéria qualitativamente determinada. Escreveu:
«O mesmo se passa com aquilo que deve receber, frequentemente, em boas condições e em toda a sua extensão, as imagens de todos os seres eternos: convém que seja, por natureza, alheia a todas as formas. É por isso que não se deve dizer que a mãe e o receptáculo de tudo o que nasceu visível ou sensível de uma maneira ou doutra é a terra,ou o ar, ou o fogo, ou a água, ou alguma das coisas que delas se formaram ou que lhes deram orgem. Mas se dissermos que é uma espécie invisível e sem forma que recebe tudo, e que participa do inteligível de uma maneira bastante obscura e muito difícil de compreender, não mentiremos. (...) A parte dela que está em ignição parece ser fogo, a parte liquefeita água, e terra e ar na medida em que recebe imagens destes elementos.» ( Platão, Timeu, Diálogos, PEA, Pag. 276)
Eis como Aristóteles dissocia lugar de espaço abstracto ou vazio:
«Ora bem, se o lugar não é nenhuma de estas três coisas, quer dizer, nem a forma, nem a matéria, nem uma extensão que esteja sempre presente e seja diferente da extensão da coisa deslocada, o lugar terá que ser então a última das quatro, a saber: o limite do corpo continente que está em contacto com o corpo contido. (...)»
«O lugar, ao contrário, quer ser imóvel, por isso o lugar é mais precisamente o rio total, porque como totalidade é imóvel. Por conseguinte, o lugar de uma coisa é o primeiro limite imóvel de o que a contém.» (Aristóteles, Física, Livro IV, 212 a; a letra negrita é posta por mim).
Lugar, é, pois, para Aristóteles um corpo estar contido noutro (exemplo: a planície é um lugar que contêm os sobreiros). Não é o mesmo que espaço (chora) ou extensão que está sempre presente e que transcende a extensão do movimento dos corpos e da presença deste.
Platão não usa o termo hylé, segundo Ivan Gobry, termo que é usado frequentemente por Aristóteles e designa a matéria-prima, indiferenciada, fonte monoelementar de todos os objectos. Na verdade, uma árvore, uma rocha, a água de um rio ou o fogo são feitos da mesma matéria-prima universal que é moldada pelas formas madeira, pedra, água e fogo.
Ora qual é a diferença entre a chora de Platão e a hyle de Aristóteles? Aparentemente, a chora é um lugar, é tridimensional - possui comprimento, largura e altura indeterminados - ao passo que a hylé não é um lugar, não ocupa lugar e não é senão uma "massa" informe que não existe mas, de algum modo, é. Aristóteles retirou a extensão à chora de Platão mas conservou-lhe o carácter de matéria sem forma, moldável, receptáculo universal das formas. Ao desespacializar a matéria-prima, Aristóteles abriu caminho à metafísica cristã da criação do mundo a partir do Nada ("ex nihil"), ainda que no Estagirita as formas não estejam no seio de Deus mas sejam eternamente subsistentes ao lado da hylé, plástica e moldável.
A teologia cristã foi, por conseguinte, inspirar-se em Aristóteles e em Plotino - para este, as essências das coisas repousam, como modelos exemplares, no seio da mente divina, ao passo que Platão separava Deus das Ideias eternas e autosubsistentes - para construir o seu sistema.
Com a diferença de que o espaço segundo Kant é subjectivo ou intersubjectivo e em Platão não, Kant equipara-se a Platão na maneira de conceber o espaço: é uma estrutura formal, vazia, destituída de matéria, feita de figuras geométricas. É evidente que Platão não refere a essência do espaço como infinitas figuras geométricas mas como o receptáculo dessas formas porque os modelos destas estão no mundo inteligível, suprafísico. Mas o espaço, apesar do seu vazio formal, não é o nada: é o recipiente eterno que faz frente ao inteligível. www.filosofar.blogs.sapo.pt
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No seu livro célebre «Mais Platão, menos Prozac» Lou Marinoff, filósofo norte-americano de qualidade mediana, postula a filosofia como método de aconselhamento paralelo à psicologia e à psiquiatria. Não ponho em causa as cinco fases do método teorizadas por ele, isto é, o processo PEACE: Problema, Emoções, Análise, Contemplação, Equilíbrio. Há, evidentemente, docentes de filosofia, filodoxos, não filósofos, com os seus consultórios abertos, movidos exclusivamente pela vontade de ganhar dinheiro, armados de um suposto altruísmo, à custa do método Marinoff, mas isso não invalida este nem retira legitimidade a uma moderada mercantilização do «aconselhamento filosófico».
A ÉTICA DEONTOLÓGICA É ESPÉCIE DO GÉNERO ÉTICA TELEOLÓGICA, CONTRA O CONSENSO GERAL NA ÉTICA TEÓRICA
Como teórico, Marinoff mergulha no magma da relativa confusão em que borbulham os principais catedráticos da ética a nível mundial, ao estabelecer uma diferença ao mesmo nível ( de espécie a espécie do mesmo género) entre ética deontológica e ética teleológica. Escreveu:
«Mesmo sabendo o que é bom , continuaremos a enfrentar um dilema: a escolha entre dois meios principais de compreender o que é justo. Estes dois meios são a ética deontológica e a ética teleológica.»
«Os deontologistas crêem que a correcção ou incorrecção do acto não têm nada a ver com o bom ou o mau resultado que ele provoca, os actos são bons ou maus por si próprios. Assim se, por exemplo, aceitarmos os Dez Mandamentos, dispomos de um conjunto de regras que nos dizem o que está certo e o que está errado, ainda antes de cometermos o acto. Mas os manuais de regras também não ajudam muito, pois quase todas as regras têm excepções. Se, na sua maioria, as pessoas concordam com as regras básicas (por exemplo: "Não matarás"), é também a maioria que quer ver algumas excepções consagradas na lei (por exemplo: autodefesa, guerra, aborto, eutanásia). Os deontologistas podem até acabar por se matarem uns aos outros, por não chegarem a acordo sobre as excepções à regra (" Não matarás"). A força da deontologia está em dispor de princípios morais; a sua fraqueza reside na dificuldade em estabelecer um conjunto de excepções aproveitável.»
«Os teleologistas sustentam que a correcção ou incorrecção do acto dependem, em parte, ou mesmo completamente, da bondade ou da maldade do resultado. Se, por exemplo, aceitarmos o utilitarismo ("a maior felicidade para o maior número"), somos teleologistas. Enquanto um deontologista podia facilmente condenar o Robin dos Bosques (porque roubar é um crime) o teleologista esperaria até ver que destino ele dava ao produto do roubo. Se o Robin dos Bosques abrisse uma conta num banco suíço, o teleologista diria que, por ter roubado para ter proveito pessoal, ele era um criminoso; se o Robin distribuísse o saque pelos pobres, o teleologista diria que ele era um justo, que só estava a ajudar os outros." (Lou Marinoff, «Mais Platão, menos Prozac», Editorial Presença, pag. 193; a letra negrita é colocada por mim).
Está correcta a distinção entre éticas deontologistas e éticas teleologistas, consensual a nível mundial? A meu ver, não. Toda a ética é teleológica ou teleologista isto é visa atingir determinados fins. Inclusive a ética de Kant, tomada como modelo contemporâneo da ética deontológica.
Kant descreveu como imperativo categórico o seguinte princípio: «Age de tal modo que a máxima da tua vontade possa valer sempre ao mesmo tempo como princípio de uma legislação universal» (Kant, Crítica da Razão Prática, parte I, livro I, A 55). Ele dá-nos a finalidade - a equidade no comportamento para com os outros, a transmissão do bem fazer ou do bem punir sem olhar a quem, isto é, iluminada por um ideal de justiça universal- e esconde os meios, o conteúdo deontológico concreto, que deixa ao critério de cada um. Como não será, pois, uma ética teleológica a ética de Kant? Nela os fins universais e altruístas são mais importantes que os meios, ao contrário do que se diz habitualmente.
Por outro lado, a ética de Stuart Mill, igualmente teleológica mas eivada de pragmatismo, tem uma dimensão deontológica. Buscando a felicidade da maioria em cada circunstância, Mill sustenta que nem sempre os fins justificam os meios, isto é, não vale todo e qualquer meio ou método. Confusamente, os sucessores de Mill vieram dividir a árvore do utilitarismo em dois ramos - o utilitarismo dos actos e o utilitarismo das regras - sem perceberem ou sem quererem reconhecer que este último é deontologismo.
Se a distinção de Marinoff e dos teóricos da ética em geral entre deontologismo e teleologismo é equívoca, qual é então a distinção certa?
É aquela que coloca a deontologia como espécie dentro do género ética teleológica ou ética de fins. Assim há uma ética teleológica «deontológica» rígida em Kant, defensora dos direitos individuais, e uma ética teleológica pragmática, flexivelmente «deontológica», defensora do primado do direito colectivo do maior número, em Stuart Mill.
HÁ UM INTERMÉDIO ENTRE ABSOLUTISMO E RELATIVISMO TOTAL, QUE MARINOFF NÃO DISCERNE
Sobre a oposição absolutismo-relativismo nos valores éticos, escreveu Marinoff:
«A Sonia e a a Isabelle estavam envolvidas numa das batalhas tradicionais da filosofia: relativismo contra absolutismo. Os relativistas argumentam que os princípios e os actos não são intrinsecamente certos ou errados, que são as culturas e os indivíduos que lhes atribuem valor (por exemplo: a beleza está nos olhos de quem a vê). Nesta linha de pensamento nenhuma coisa é, de per si, melhor ou pior do que outra coisa. Os preceitos estéticos e morais a que obedecemos são de nossa responsabilidade, não podem ser julgados de maneira objectiva.»(Lou Marinoff, «Mais Platão, menos Prozac», Editorial Presença, pag. 141; a letra negrita é colocada por mim).
As coisas não são exactamente o dualismo simplista que Marinoff, neste texto, e outros delineiam. Há um intermédio entre absolutismo e relativismo total, tal como há um intermédio entre a ditadura totalitária (nazi-fascista, estalinista ou teocrática) e o anarquismo, intermédio que é a democracia liberal. Esse intermédio é o relativismo ancorado no absolutismo - um relativismo dogmático - que se distingue do relativismo total, flutuante sobre a nuvem do cepticismo.
Por exemplo, matar é intrinsecamente errado na ética utilitarista mas pode ser extrinsecamente correcto, segundo esta ética, em certas circunstâncias. Os princípios absolutos não desapareceram no relativismo de Mill: as suas posições, a sua influência é que sofrem variação e daí que em certas circunstâncias, seja legítimo (de um ponto de vista extrínseco) matar seres humanos e em outras, não.
FALTA DE CLAREZA SOBRE O SIGNIFICADO DE METAÉTICA
Marinoff emprega de forma confusa, o termo meta-ética:
«Então, em que ficamos na nossa busca de vida dos justos? Adoptamos o relativismo meta-ético, se queremos usar um termo técnico. Como vimos no Capítulo 8, o relativismo é a doutrina que nega a existência do bem absoluto, que defende que, conforme as circunstâncias, certos actos são mais apropriados do que outros. Se conseguir imaginar que algumas vezes a deontologia funciona melhor que a teleologia, enquanto que noutros casos se dá o inverso, então o leitor é um relativista metaético.» (Lou Marinoff, «Mais Platão, menos Prozac», Editorial Presença, pag. 193-194; a letra negrita é colocada por mim).
Metaética não é oscilar entre duas posições éticas, o deontologismo de Kant e o utilitarismo de Mill, como sustenta Marinoff. Quem oscila, está circunscrito ao campo da ética. Metaética é o que transcende a ética, constitui o seu enquadramento ou o seu horizonte, sem ser ética. Por exemplo, a determinação da existência e da importância de livre arbítrio e determinismo na acção humana é um problema metaético, enquanto ontologia. A biologia, a geografia, a geologia, a astrologia real ( a influência real dos astros no comportamento humano, excluindo ou reduzindo o livre-arbítrio), a química, são componentes da metaética.
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«Vocabulário grego de filosofia» de Ivan Gobry é um livro que qualquer professor ou estudioso de filosofia deve possuir na sua biblioteca, pela riqueza de informação nele concentrada. Sobre a teoria de Parménides escreve Ivan Gobry:
«Com Parménides, o Uno já não é Princípio e Fonte dos seres, mas o Único, o Ser que não tolera outro. (...) Seu raciocínio é simples: o ser, sendo eternamente o mesmo, é perfeito e imutável; portanto, não pode ser o Princípio, pois o facto de dar o ser a outros o privaria da totalidade do Ser. Esse Uno é puramente inteligível, pois somente a via da razão pode encontrá-lo, visto que os sentidos só conhecem o múltiplo (fr II, VI, 4; VIII, 20).» (Ivan Gobry, Vocabulário grego da filosofia, Livraria Martins Fontes, pag 72; a letra negrita é colocada por mim).
Contesto esta interpretação de Gobry sobre o poema de Parménides. O facto de o ser dar ser a outros não o priva em nada da sua totalidade. Em analogia com a teoria de Platão: o facto de o Arquétipo de Belo, sem forma física, irradiar o belo sobre todas as coisas, accões e ciências belas em nada dissolve ou diminui o ser, a essência ou ideia de Belo, hiperfísica.
Não está dito nos textos de Parménides que o Ser é inteligível em si mesmo , isto é, não está explícito que o ser é pensamento puro, até porque o pensamento possui diferenciação, heterogeneidade, qualidades que não há no ser. A frase de Parménides «ser e pensar é um e o mesmo» não significa que desapareça a diferença entre o ser e o pensar mas sim que possuem identidade, encaixe mútuo, que só se acede ao "ser" pela via inteligível.
Por outro lado, ao invés do que afirma Ivan Gobry, o Ser é fonte de todos os entes imersos no mundo físico da aparência: é o substrato uno, imóvel, imanente a todas as coisas e processos.
Parménides não negou o devir em todas as modalidades. Negou-o no plano do ser que ele entende como um substracto esférico, imóvel, homogéneo, incriado dos entes. Portanto, ao contrário do que Gobry afirma, o Ser é o Uno mas não o Único. O Ser permite o múltiplo - que é e não é - no plano da ex-istência (ex ou ek significa fora; fora do Ser). A oposição entre Parménides e Heráclito não é absoluta, como vulgarmente se propaga. Parménides admite a mudança no plano ôntico - para usar a terminologia de Heidegger - mas não no plano ontológico. Diríamos que Parménides é dialéctico, «heraclitiano», no plano da descrição dos fenómenos, das aparências sensíveis, do mundo físico, (a via da aparência) mas recusa a dualidade no seio do ser profundo e primordial que Heráclito advogava.
© (Direitos de autor para Francisco Limpo de Faria Queiroz)
O Dicionário de Filósofos, de Noella Baraquin e Jacqueline Lafitte, sem embargo de ser aparentemente uma obra de elevada qualidade filosófica, comporta erros sobre a teoria de Aristóteles, particularmente na doutrina da forma e da essência e na doutrina das quatro causas.
A FORMA (MORPHÈ) NÃO É A ESSÊNCIA (EIDOS)
Refere o dicionário a respeito da forma, da essência e das causas no sistema de Aristóteles:
«A forma sob a qual a coisa aparece constitui a sua essência e é indissociável da matéria (hilemorfismo). Ela é também o princípio que lhe confere a existência e que faz com que um ser pertença a uma dada espécie (princípio de individuação).»
«Assim, a existência de outras espécies corresponde ao movimento, à mudança de ordem do lugar, da quantidade e da qualidade.»
«A substância depende de quatro causas: material (o elemento), formal (a forma, o modelo), a causa eficiente ou motriz (o agente que actualiza o potencial) a causa final (que não é senão a substância ou essência, a forma para a qual tende a matéria.»
«Sendo agente e fim uma e a mesma coisa que a forma, as causas são redutíveis à forma e à matéria.» (Noella Baraquin e Jacqueline Lafitte, Dicionário de Filósofos, Edições 70, Pág 31-32).
Antes de mais, importa, rectificando o dicionário, frisar que a forma sob a qual a coisa aparece não constitui a sua essência no quadro do pensamento de Aristóteles: a forma individualizada, última, da coisa, é diferente da essência ou forma específica (eidos) que está na sua génese. A essência (eidos) precede a forma singular (morphé) porque esta resulta da impressão daquela na matéria-prima. Se a forma fosse a essência, diríamos que a forma Sócrates ou a forma Platão seriam a essência destes, o que Aristóteles nega rotundamente.
Também na citação acima é confusa a referência ao princípio da individuação. Não é este que faz com que um ente pertença a uma dada espécie, mas sim o princípio da especificação, a forma comum. A individuação conferida pela matéria afasta a coisa da espécie, singulariza.
AS QUATRO CAUSAS NÃO SE REDUZEM A DUAS, A FINAL NÃO É A FORMAL
A causa final está mal definida de um modo geral: confunde-se com a causa formal.
Reduzir as causas eficiente, formal e final a uma só é um equívoco: significaria dizer que o fabricante do relógio (causa eficiente), a forma do relógio (causa formal) e a contagem do tempo (causa final) são a mesma coisa, o que é absurdo.
Ora esta redução das quatro causas a duas é negada, em partes capitais da «Metafísica», pelo próprio Aristóteles que escreveu:
«Chama-se causa, num primeiro sentido, a matéria imanente da qual se faz algo; por exemplo, o bronze é causa da estátua, e a prata da taça, e também os géneros destas coisas. Em outro sentido, é causa a espécie e o modelo; e este é o enunciado da essência e os seus géneros (por exemplo, da oitava musical, a relação de dois para um, e, em suma, o número); e as partes que há no enunciado. Ademais, aquilo de onde procede o primeiro princípio da mudança ou da quietude; por exemplo, o que aconselhou é causa da acção, e o pai a causa do filho e, em suma, o agente, do que é feito, e o que produz a mudança do que a sofre. Ademais o que é como o fim; e isto é aquilo para o que algo se faz, por exemplo, do passear é causa a saúde. Porquê, com efeito, se passeia? Dizemos: para estar são.»
(Aristóteles, Metafísica, Livro V, 1013 a, Edición trilingue, Gredos, Madrid, pág 218-219)
Vemos que a definição do Dicionário «a causa final (que não é senão a substância ou essência, a forma para a qual tende a matéria.» está genericamente errada, uma vez que em numerosos casos a finalidade não é forma mas sim um estado afectivo ou qualidade. Exemplo: a causa final de um almoço de amigos não é a comida (substância ou essência) mas sim o convívio alegre e fraterno e a manutenção do corpo.
A causa final não é, em muitos casos, a forma acabada, perfeita (a enteléquia) por exemplo, o corpo perfeito que, num homem idoso, já não pode acontecer - mas um outro estado: a saúde, no exemplo dado por Aristóteles. Sob um ponto de vista orgânico-biológico poder-se-ia dizer que a causa final do bebé é um corpo de jovem adulto o que daria alguma razão às autoras do Dicionário mas a definição de causa final continua a ser deficiente, errónea em geral.
Mesmo que Aristóteles nalgum texto tivesse escrito que as quatro causas se reduzem a duas o que é possível, dado que há incoerências dentro do texto da Metafísica e em outros textos aristotélicos é equívoco colocar essa tese num Dicionário de Filosofia como corolário da teoria das quatro causas.
© (Direitos de autor para Francisco Limpo de Faria Queiroz)
O volume I da Nova História da Filosofia Ocidental, de Anthony Kenny, é uma obra de méritos, assente numa investigação detalhada de uma extensa lista de obras. No entanto, comporta alguns equívocos que importa assinalar. Kenny, apesar do prestígio académico mundial de que goza, não é um filósofo de águas profundas. Falta-lhe alguma clareza. É um erudito, mas não um verdadeiro pensador.
UMA CONCEPÇÃO ERRÓNEA DE CAUSA FORMAL ARISTOTÉLICA
Sobre a teoria das quatros causas de um ente, exposta por Aristóteles, escreve Kenny:
«Aristóteles dá-nos uma classificação dos primeiros filósofos gregos de acordo com a estrutura do seu sistema de quatro causas. Acreditava que a investigação científica estava acima de toda a investigação das causas das coisas e que havia quatro tipos diferentes de causa: a causa material, a causa eficiente, a causa formal e a causa final. Eis uma ilustração tosca do que tinha em mente: quando Alfredo confecciona um risotto, as causas materiais do risotto são os ingredientes necessários à confecção, a causa eficiente é o próprio cozinheiro, a receita é a causa formal e a satisfação dos clientes no restaurante, a causa final.» (Anthony Kenny, Filosofia Antiga, Volume 1 da Nova História da Filosofia Ocidental, Gradiva, pág 19; a letra a negrito é de minha autoria).
Ora a causa formal do risotto é a forma arredondada deste prato italiano e de cada um dos grãos de arroz injectados de caldo de carne que o compõem. Não é a receita. Esta é uma causa eficiente teórica conceito que Aristóteles, ao que suponho, não desenvolveu. A receita do risotto não é a forma final deste, é o método para o confeccionar.
Kenny não concebe a causa formal do risotto como a forma física deste, o que constitui um erro grave ao interpretar Aristóteles.
ARISTÓTELES IDENTIFICOU EXISTÊNCIA COM SER EM ACTO OU PLENAMENTE REALIZADO NO LIVRO V DA METAFÍSICA, AO CONTRÁRIO DO QUE AFIRMA KENNY
Vejamos, agora, os equívocos de Kenny sobre a identificação de ser com existência operada tanto nas filosofias de Parménides como na de Aristóteles, o que não significa que para estes filósofos a amplitude do ser não exceda a da existência, espraiando-se na essência in-existente ou essente:
«Em Aristóteles, como em Parménides, é um erro identificar ser com existência. Na entrada ser do léxico filosófico da Metafísica Δ, a existência nem sequer é mencionada como um dos sentidos da palavra. Isto é surpreendente, já que, de tempos a tempos, nas suas obras de lógica, parece ter identificado a existência com um sentido especial de ser.» (Anthony Kenny, Filosofia Antiga, Volume 1 da Nova História da Filosofia Ocidental, Gradiva, pág 241; a letra a negrito é de minha autoria).
A primeira frase desta citação de Kenny está parcialmente errada. Em vez de dizer «Em Aristóteles, como em Parménides, é um erro identificar ser com existência» a frase deveria ser a seguinte: «Em Aristóteles, como em Parménides, é um erro identificar ser exclusivamente com existência. ». Porque tanto em Parménides como em Aristóteles ser possui um sentido de existir, ser verdadeiro, ser em acto.
Também não é rigorosamente verdade que «na entrada ser do léxico filosófico da Metafísica Δ, a existência nem sequer é mencionada como um dos sentidos da palavra. » A referência à existência está implícita na expressão está plenamente realizado ou está em acto: Aristóteles escreveu aí, no livro Δ:
«84) Ademais, e a respeito de todos estes sentidos enumerados, ser e o que é significam tanto o que se diz que é em potência como o que se diz que é já plenamente realizado: efectivamente, tanto do que pode ver como do que está vendo dizemos que é alguém que vê
» (Aristóteles, Metafísica, Livro V, 1017 a-b)
Ao contrário do que sustenta Kenny, Aristóteles aponta neste livro V da Metafísica ser como acto, isto é, existência presente. Falta perspicácia ao nosso historiador inglês da filosofia
O SER DE PARMÉNIDES NÃO TEM QUALIDADES COMO ÁGUA, TERRA, QUENTE E FRIO, AO INVÉS DO QUE DIZ KENNY
Kenny expõe de maneira ambígua, a concepção de ser em Parménides:
«Para Parménides, o Ser é não só aquilo que existe, mas também aquilo acerca do qual qualquer frase que contenha é seja verdadeiro. Do mesmo modo, ser não é apenas existir (ser simplesmente) mas ser seja do que for: ser quente ou ser frio, ser terra ou ser água, e assim por diante.» (Anthony Kenny, Filosofia Antiga, Volume 1 da Nova História da Filosofia Ocidental, Gradiva, pág 218; a letra a negrito é de minha autoria).
O ser em Parménides é fundamentalmente existencial é eterno e a eternidade é existência ou in-sistência - e como essência é holístico, quase absolutamente indeterminado, formal. A água, o fogo, ou a terra não possuem um ser água, nem um ser fogo, nem um ser terra, porque são alteráveis e o ser é imutável. No entanto, repousam no ser uno, imóvel, eterno, homogéneo, imutável, que subjaz à via das aparências.
«Como poderia o que é depois disso perecer? Como poderia nascer? Pois se nasceu, não é, nem há-de ser alguma vez. Portanto, fica extinto o nascimento e ignorada a destruição.» (Parménides in Simplício, Física, 145, 1)
A água enquanto água ou a terra enquanto terra não são ser; apenas a água enquanto não água e a terra enquanto não terra, isto é, enquanto substância indeterminada e imóvel integram o ser, são ser. É isto que Kenny não consegue intuir com clareza nem explicar.
AMBIGUIDADE SOBRE A DEFINIÇÃO OU QUIDIDADE DE SÓCRATES QUE PARA ARISTÓTELES NÃO EXISTE
Aristóteles foi bastante claro sobre as substâncias individuais como Sócrates, Platão, Alexandre Magno, templo de Delfos, farol de Alexandria, etc: não têm definição, não possuem essência enquanto singulares. A essência de Sócrates, Platão e Alexandre é uma forma específica que, de certo modo, lhes é exterior: homem.
«Assim, pois, não haverá essência das coisas que não sejam espécies de um género, mas somente de estas...» (Aristóteles, Metafísica, Livro VII, 1030a).
Todavia, Anthony Kenny é pouco claro ao interpretar Aristóteles neste campo: reconhecendo embora que a carne e os ossos de Sócrates ou de Platão não pertencem à essência homem, tal como Aristóteles deixou bem expresso, Kenny deixa na dúvida se existe definição e quididade de Sócrates:
«O corpo de Sócrates faz parte claramente de Sócrates, mas fará parte da definição ou quididade de Sócrates?» (Anthony Kenny, Filosofia Antiga, Volume 1 da Nova História da Filosofia Ocidental, Gradiva, pág 241).
Posto isto, pergunto: podemos fazer fé nos catedráticos de filosofia se, a quase totalidade deles comete erros de palmatória ao expor doutrinas filosóficas? Não será verdade que quase todos as teses de doutoramento em filosofia padecem de erros, mais ou menos graves, que passam inapercebidos mercê da discutível categoria dos júris? Desconfiemos da autoridade em filosofia! Dá-se o caso de que, na grande maioria das situações, quanto mais títulos académicos ostenta, quanto mais alto sobe na esfera universitária, editorial e televisiva, mais incompetente é o apregoado filósofo ou filodoxo.
© (Direitos de autor para Francisco Limpo de Faria Queiroz)
O termo «eduquês», algo ambíguo, entrou há cerca de uma década no vocabulário pedagógico em Portugal, ao que parece pela voz de Marçal Grilo. Designa, segundo parece, a corrente construtivista libertária na pedagogia que, por exemplo, A.S.Neil encarnava: é mais importante o aluno aprender por si mesmo, a heurística, a forma livre do captar e conceber algo, do que o conteúdo deste algo, do que a substancialidade do conhecimento. Nuno Crato, professor universitário de matemática, caracterizou assim o eduquês:
«A corrente tem uma interpretação pós-moderna pois sublinha a intervenção, a interpretação e o processo, não os factos, os currículos, os conteúdos e os resultados educativos. Descrê da objectividade, da capacidade de apreender a realidade e da possibilidade de o conhecimento científico chegar a conclusões, ainda que questionáveis e possivelmente provisórias. Aí se encontra a raiz do desprezo pelos conteúdos científicos e processos cognitivos, a par da arrogância construtivista, que imagina os alunos capazes de criticar e construir conhecimentos a partir do nada. A corrente tem uma inspiração romântica, não por propagar ideias lunáticas e atoleimadas - que, muitas vezes, são de facto, lunáticas e atoleimadas - mas porque se enquadra num movimento filosófico e pedagógico anti-racionalista que tem Jean Jacques-Rosseau (1712-1778) e outros como precursores.» ( Nuno Crato, O eduquês em discurso directo, uma crítica da Pedagogia Romântica e Construtivista, Gradiva 2006; http://www.filedu.com/ncratoeduques.pdf).
Um dos pressupostos do «eduquês» é sacudir a carga histórica memorizadora do saber e permitir a "descoberta virginal" da verdade pelos alunos. Saber centrado no aluno, respeitador da sua autonomia, portanto...
Assim, os teóricos portugueses do eduquês no campo da filosofia - entre outros, o núcleo de professores universitários e liceais que impulsiona a revista "crítica na rede" - sustentam (alguns já perceberam a inconsistência da sua posição) que dar aulas de filosofia interpretando textos de Platão, Aristóteles, Tomás de Aquino, Descartes, Hegel, Heidegger, etc, registando os conceitos e raciocínios destes filósofos consagrados é «fazer história da filosofia» mas não, filosofar.
Confundem o continente(exemplo: o diálogo "Sofista" ou o "Fédon" de Platão) com o conteúdo (exemplo: a ideia filosófica de que "o ser, o movimento, o repouso, o mesmo e o outro são os géneros supremos"). Imaginemos que, em pleno século XXI, um aluno que nunca tivesse lido Platão chegava por si mesmo à conclusão de que há cinco géneros supremos - o ser, o movimento, o repouso, o mesmo e o outro.
«Isso sim, é filosofar!» - exclamariam os construtivistas do "eduquês". Mas outro aluno, que lesse esses cinco géneros no "Sofista" de Platão e questionasse a sua natureza, ou os aceitasse, "não estaria a filosofar", segundo aqueles teóricos, pois cometeu o pecado de ler um documento histórico "fossilizado", contaminado pela "autoridade" de Platão O filosofar seria, pois, o acto construtor de um raciocínio ou série de raciocínios mas não o momento final deste acto, a apreensão de uma dada essência, de uma ideia, uma tese....Basta que outro a tenha pensado antes para já "não ser filosofia" mas sim ... "história da filosofia".
É ridícula esta confusão entre a ideia e o raciocínio filosóficos, por um lado, e a chancela do tempo ou contexto histórico em que surge, por outro. Por este deficiente modo de pensar, estudar a tabela periódica dos elementos não seria estudar química mas sim história da química e por aí adiante...
Não deixa de ser engraçado ver artífices da "crítica na rede" (Desidério Murcho, Aires Almeida, Pedro Galvão, etc) disparar flechas de crítica contra o "eduquês" quando eles mesmos, pela separação artificial que fazem entre filosofia e história da filosofia e pela supervalorização da lógica proposicional que promovem ,são militantes e impulsionadores desse mesmo eduquês, romanticamente superficial e populista.
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